terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Impressões de uma viagem ao coração do ‘império’: lá como cá... (II)

As aspirinas da crise (II)

Por esta altura, nem a imponência dos enormes arranha-céus de Nova Iorque consegue esconder os preocupantes sinais da crise, um pouco por todo o lado: desde logo o número impressionante de desempregados – só o mês de Janeiro trouxe cerca de mais 600.000! – que cresce assustadoramente com o anúncio diário de novos despedimentos; a angústia invadiu as ruas de várias cidades com marchas pelo emprego e relança o debate sobre a eficácia das medidas postas em marcha; nas televisões passam com frequência exemplos de famílias desesperadas e o consequente tratamento pedagógico de cada situação, sucedem-se os apelos à caridade...

Os colossais apoios dedicados à sustentação do debilitado sistema financeiro, depois da ruína provocada pelos engenhosos métodos (de par, é certo, com comportamentos fraudulentos) da gestão privada, ao longo sobretudo das duas últimas décadas, demonstram-se assim insuficientes para relançar a economia e suster a degradação contínua da situação social que, tudo o indica, vai aprofundar-se. Perante isto, a recém empossada Administração americana, como de resto vem acontecendo em todo o mundo, sentiu a necessidade de avançar com um outro pacote de medidas, mais orientado para o apoio directo à economia real.

O ‘stimulus plan’ de Obama, afinal, em nada difere do que a generalidade dos responsáveis políticos tem vindo a adoptar por toda a parte, centrado em torno das receitas tradicionais do estímulo da economia pelo aumento do consumo, tanto pela via do incentivo à procura privada – através do reforço do poder de compra – como pelo incremento do investimento público – garantindo mais oportunidades às empresas. Sendo o objectivo essencial deste plano a luta contra o desemprego, procura-se que as medidas nele contempladas, depois de executadas, possam contribuir para a manutenção de empregos em risco e a criação de novos postos de trabalho.

A discussão estabelecida em torno das medidas propostas por Obama para relançar a economia e o emprego (desde logo representando, lá como cá, uma ínfima parcela dos apoios concedidos ao sistema financeiro!), centrou-se na forma de como conseguir voltar à expansão passada – desbaratada na aventura mal sucedida de um capitalismo totalmente desregulado e selvagem – ou seja, como retomar os anteriores níveis de consumo por forma a que as empresas conseguissem manter os seus níveis de actividade e, assim, garantir os postos de trabalho cada vez mais ameaçados. Tratou-se apenas de saber qual a melhor forma de pôr de novo a funcionar a impressionante máquina consumista que organiza e rege a sociedade norte-americana, máximo paradigma das sociedades actuais, quaisquer que elas sejam.

Assistiu-se então a uma minuciosa negociação, entre democratas e republicanos, com vista à elaboração do documento final, com aqueles a procurarem defender o peso dos apoios directos do Estado (investimentos distribuídos pela energia – ciência e tecnologia – infra-estruturas – educação – cuidados de saúde) e os segundos a tentarem esticar o peso dos cortes nos impostos. Curioso o recurso ao ‘infamante’ epíteto de ‘socialista’, com que os republicanos pretenderam condicionar Obama por este haver apostado mais na intervenção pública pela via dos investimentos do que pela via fiscal!

Mais do que o resultado final desta autêntica maratona negocial (que se saldou por uma ligeira cedência dos democratas na redução do valor destinado aos investimentos – os respectivos pesos passaram de 33/67 para 36/64), importa sobretudo notar que:
· Lá como cá, as receitas para se sair da crise, afinal, passam pelo reforço do vírus que lhe está na origem, o extremo consumismo (ainda que se não queira admiti-lo, mesmo que a espuma dos dias nos tenha trazido primeiro uma crise financeira), traduzindo maior pressão sobre os recursos. Pode afirmar-se que, no curto prazo, não sobrava qualquer outra alternativa. Talvez. Mas convém registar.
· Lá como cá, a destruição de postos de trabalho atinge proporções alarmantes, a que acresce o facto de, por norma, a criação de novos empregos implicar, a prazo, a destruição de empregos existentes a ritmo muito superior. Processo inevitável, é certo (por força da automação,...), mas que ajuda a perceber o ‘buraco’ actual das economias capitalistas. E de que, no final, dificilmente sairão ainda capitalistas...
· Lá, ao contrário de cá, houve mesmo abertura à negociação, daí resultando acertos na proposta final aprovada! O que também merece acentuar-se – pela diferença.

Apesar de em momento algum ter sido posto em causa o modelo económico responsável pela actual crise (não obstante todos os esforços para a atribuírem a comportamentos individuais fraudulentos) – longe, pois, de se afastar do consagrado paradigma consumista – este processo comporta, ainda assim, outros aspectos, a indiciar novas tendências, que convirá começar desde já a explicitar melhor.
(...)

2 comentários:

Carlos Borges Sousa disse...

Grande lucidez analítica; só nos resta, então e agora, os próximos capítulos.
CBS

José M. Sousa disse...

A propósito da automação, uma curiosidade: a Suécia é o pais com mais autómatos por nº de trabalhadores e tem uma taxa de desemprego (oficial) relativamente reduzida.
O problema que esta crise nos levanta é se precisamos mesmo de uma sociedade tão produtivista, em que quem não tem emprego fica à mercê da caridade. Parece que a sociedade americana - e não só - como um todo ainda está longe desta reflexão.