sábado, 1 de novembro de 2008

A factura da crise

Por estes dias, dias de crise e de natural ansiedade, uma das palavras mais ouvidas é ‘ajustamento’. Sabido que a crise financeira teve a sua origem (?) no desfasamento brutal entre a economia real e o próprio sistema financeiro – estima-se que os activos financeiros em circulação no mundo, entre 1980 e 2006, tenham aumentado cerca de quatro vezes mais (!!!) que o valor do PIB (valores apurados de 130% e 380%, respectivamente) – rebentada a bolha especulativa, afanam-se agora os responsáveis em voltar a fazer corresponder o sistema financeiro à economia real, para o que se torna então necessário proceder a profundos ‘ajustamentos’ estruturais.

Mas quando a teoria tradicional fala em ajustamentos na economia, eles têm sempre o mesmo sentido: trata-se invariavelmente de comprimir salários, confiscar regalias, reduzir benefícios sociais, em suma, de fazer pagar os desvarios especulativos de alguns, por quem não tem absolutamente nada a ver com eles, os trabalhadores (com natural incidência nos menos qualificados e mais mal pagos, por isso mesmo também menos defendidos e mais expostos). A pretexto de se evitar a ‘fuga de capitais’, dada a livre circulação financeira mundial, nunca as grandes fortunas, seguramente as mais (senão mesmo as únicas) beneficiadas, previsivelmente ou com toda a probabilidade as causadoras e responsáveis pelos desajustamentos ocorridos, são importunadas nem afectadas por qualquer medida tendente a repor um mínimo de justiça (aqui apenas a justiça dos tribunais, entenda-se, não a que resulta dos princípios de equidade).

Hoje, ainda a notícia em torno das declarações de um professor universitário norte-americano (não fixei o nome), antigo administrador da Lehmann Brothers. Afirmou ele que o maior erro das autoridades foi terem permitido a falência desta instituição financeira. Não por se tratar especificamente do Lehmann, mas por ser um grande banco de investimento, o que provocou a quebra de confiança e a instauração do medo entre a população. Presumo que, depois deste aviso, não mais algum Estado do mundo globalizado se arriscará a deixar ‘cair’ qualquer banco de referência. Atrevo-me mesmo a considerar impensável, no ponto em que as coisas estão, que tal ocorra com qualquer banco, dado o efeito de contágio que inevitavelmente alastraria sobre todo o sistema. Temos, pois, como muito provável, a intervenção do Estado no sector bancário ao longo dos próximos meses, sob efeito sobretudo das ondas de choque que reverterão, desta feita da economia real, onde os sinais de uma crise profunda começam já a despontar: ao sector imobiliário, em queda livre, segue-se agora o automóvel, a restauração,...

Não é possível ainda prever a dimensão dessa intervenção, mas ela será certamente a necessária e a suficiente para evitar o colapso da economia. Pelo menos nisso o sistema está avisado desde a ‘crise de 29’ e tem vindo a reagir em conformidade. E prepara-se para, como sempre, fazer pagar a factura da crise aos que para ela em nada contribuíram, seja por via dos recursos aplicados nos programas de recuperação das empresas intervencionadas, como sobretudo através das habituais medidas de reanimação da economia – centradas na inevitável desvalorização do trabalho!

É por isso que cada vez se afigura mais premente a exigência de se avançar para formas de controle do sistema financeiro, coordenadas a nível mundial, que permitam, por exemplo, fiscalizar a origem e o destino dos activos financeiros, de cuja proliferação descontrolada resultou o descalabro da situação económica actual. Com consequências ainda impossíveis de determinar, pois a crise apenas agora começou a revelar as suas manifestações perversas, por enquanto ainda muito confinadas à área financeira (o que induz em muita gente a ilusão de poder ficar a ela circunscrita), mas que rápida e inevitavelmente irá contagiar e alastrar à economia real, onde os seus efeitos serão bem mais sentidos pelos que, afinal, em nada contribuíram para a sua eclosão. Se nada entretanto acontecer ou for feito para contrariar a tendência habitual...

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