Um dos temas de que mais se houve falar por estes dias de crise – e seguramente se ouvirá ainda por muito tempo – é o da regulação (já por diversas vezes aqui abordado, enquadrado no funcionamento do mercado). A regulação como explicação para a crise; a regulação como solução para a crise.
No primeiro caso – a regulação como explicação para a crise – do que realmente se fala é da falta dela, por inexistência ou incompetência dos reguladores, o que, na opinião generalizadamente difundida, significa que se ela existisse ou tivesse funcionado, teria sido possível evitar a ocorrência daquela (ou, pelo menos, a dimensão atingida). Opinião que, diga-se, ficará sempre por provar, até porque não é possível antecipar ou conjecturar as formas concretas que as crises adoptarão perante eventuais cenários de desenvolvimento do sistema, caso existam os ditos reguladores e a sua actuação seja tida como exemplar. Ou seja, sabido que as crises são indissociáveis do mercado, a pergunta obrigatória que, para já, fica sem resposta é não só perceber qual o tipo e a dimensão que, em tais circunstâncias, essas manifestações poderão então assumir, como sobretudo por quanto tempo mais se espera poder aguentar, com mais ou menos regulação, um sistema cuja natureza própria é obter o máximo lucro através da valorização constante da mercadoria. Com a panóplia de efeitos dramáticos e perversões conhecidas. Que, já o provou, em desespero de causa não olha a meios para sobreviver – e sobreviver, neste caso, significa conseguir manter aberta a torneira da mais-valia de forma permanente e crescente, recorrendo ao todos os expedientes (predação cega de recursos, precariedade laboral, deslocalização de empresas, privatização dos últimos resquícios de serviços rentáveis,...).
O segundo caso – a regulação como solução para a crise – surge então como a grande tábua de salvação do sistema, que vê nela a forma de, mudando algumas regras, poder conservar ou mesmo consolidar o essencial. Neste sentido, as alternativas que se apresentam podem ir das simples alterações de cosmética ao que já existe (regulação de fachada), a formas mais ou menos aprofundadas e ainda não muito bem especificadas de controle e fiscalização dos mercados (regulação ‘policial’?). Passar-se-á assim, porventura, do ‘mercado livre’ ao ‘mercado vigiado’, com a regulação a exercer funções idênticas às da polícia no caso da segurança. E a questão que então parece dever colocar-se é a de se saber por quanto tempo aceitará o mercado (ou melhor, resistirá a exigência de valorização da mercadoria) ser coarctado por acção externa ao seu próprio funcionamento (por interferência do Estado ou de qualquer regulador) no objectivo básico que prossegue – como o ar que se respira, porque é a sua razão de ser – de maximizar o lucro.
As preocupações centram-se, por enquanto, na natureza e dimensão da crise económica, cujos indicadores todos os dias parecem surpreender mesmo os mais realistas batendo sucessivamente novos mínimos na actividade e sem fim à vista. Mas logo que se começar a falar de soluções destinadas a evitar no futuro o que agora aconteceu – e o tema da ‘regulação’ surgir então como a grande panaceia para os males do mercado – irá assistir-se ao curioso confronto ‘regulação–intervenção’, com o propósito assumido de se construir um modelo de regulação independente, por forma a proteger-se a economia do nefando intervencionismo estatal, reeditando a velha discussão em torno da capacidade do Estado em intervir na economia.
Ora o certo é que ninguém conseguirá dizer nem distinguir onde acaba a regulação e começa a intervenção (ou será o contrário?). É que, em bom rigor, mais regulação já significa, só por si, mais intervenção. Neste contexto, regulação equivale mesmo a intervenção. Desde logo pelo simples facto de competir ao Estado (ou aos órgãos públicos investidos da devida legitimidade) a normatização, promoção e fiscalização do modelo de regulação que vier a ser adoptado.
Incapaz de aceitar a falência do modelo responsável pela presente hecatombe, a ideologia neoliberal passará a adoptar, tacticamente, o dito propósito de uma pretensa independência da regulação. O esforço para recuperar a hegemonia agora abalada pela inclemência da dura realidade, pode passar então pela tentativa de centrar o debate nessa bizantina questão de se saber onde acaba a intervenção e começa a regulação (ou será o contrário?), na expectativa de minar a última réstia de credibilidade que assista a esta, na certeza de, por esse meio, neutralizar a acção do Estado, de voltar a contar com a sua total complacência, com ou sem reguladores.
Como quer que seja, seguramente que a ‘independência do regulador’ irá ser, sem dúvida de forma obtusa e necessariamente equívoca, um dos temas centrais dos próximos debates sobre as soluções para a crise actual.
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