Não resisto a comentar aqui o artigo, excelente de resto, que, a propósito da crise alimentar, Fernando Nobre (FN) publicou na 'Notícias Magazine' de domingo passado, sob o título ‘Tsunami silencioso’, até porque ele permite evidenciar de forma clara as limitações e as armadilhas em que se coloca o discurso de uma certa esquerda, pese embora tratar-se, reconheça-se, da mais comprometida e empenhada. Se se fala de ‘tsunami’, convém mesmo ir ao epicentro do fenómeno e, de forma realista e desapaixonada, tentar identificar a origem das suas manifestações mais cruéis.
Como pano de fundo ou causas endémicas para a persistência da fome no mundo, FN aponta a ‘incompetência, a indiferença e a ganância instaladas na governação global’, o que, sendo verdade, é muito limitado como explicação para esta situação e sobretudo perigoso, pois desvia as atenções da verdadeira origem política do problema, reduzindo as responsabilidades ao plano ético. É certo que FN, a seguir, aponta como causas próximas para a actual fome global ‘a desenfreada especulação sobre os alimentos’, em resultado da furiosa desregulamentação a que aqueles se entregaram. Ainda assim, continua-se centrado apenas nas razões imediatas e mais visíveis. Afinal, o que importa saber e perceber mesmo é a causa ou origem da desregulamentação e da especulação dos alimentos ou de quaisquer outros produtos e serviços.
Ora, na enumeração das ‘medidas estruturantes globais para acabar com a verdadeira escravidão biológica que é a fome’, FN aponta: (1) impedir a especulação financeira sobre os alimentos, (2) proibir a produção de biodiesel com alimentos, (3) adoptar medidas que evitem o agravamento das alterações climáticas, (4) aumentar as áreas de cultivo. E de novo, sendo tudo isto tão sensato, qual a razão porque duvidamos da sua exequibilidade? Porque não estamos seguros de vir a alcançar resultados essenciais neste domínio – controlar a especulação, evitar a produção do biodiesel agro-alimentar,... – por forma a alterar-se radicalmente a vergonhosa situação actual da fome no mundo?
E a resposta, mesmo no campo da ética, só pode ser a de que, tal só será possível num quadro político global diferente, que isso implica capacidade para intervir nos mecanismos que produzem a desregulamentação, a especulação, em suma, a fome.
Mas isso seria já o início de uma outra conversa. Ou de muitas outras conversas.
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3 comentários:
Sugiro a leitura do último nº do Le Monde Diplomatique, edição portuguesa, sobre este assunto e "Ladrões de Bicicletas"
Meu Caro,
Tenho, como sabe, uma grande admiração e respeito pelo Dr. Fernando Nobre e, assim e por isso, nãp poderia estar mais de acordo com a oportunidade desta "postagem".
Muito agradecido, josé m. sousa
Excelente dica, excelente artigo (Ladrões de Bicicletas). Pela informação complementar, mas sobretudo pela sua conclusão.
Quanto ao 'Le Monde', vou procurar.
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