terça-feira, 2 de junho de 2009

O automóvel, o mercado, as crises e as Europeias

IV – As razões – ou imposições ? – do mercado automóvel

O conflito aberto na Auto-Europa pela intenção da Administração em impor o sábado como dia normal de actividade (sem qualquer remuneração adicional, como obriga a legislação laboral), reporta e aviva, de forma exemplar e paradigmática, todo o processo de desvalorização do trabalho empreendido pelo capital, aproveitando a maior fragilidade negocial dos trabalhadores em período de crise. Numa altura em que o principal problema das empresas é o da ocupação do tempo de trabalho disponível, com o consequente recurso a todas as formas de o reduzir (despedimentos, ‘lay-offs’,...) sob o argumento da quebra da procura e da falta de encomendas, esta tentativa de alargar ao sábado o tempo normal de actividade parece surgir contra a corrente.

O argumento, aqui, é o dos custos salariais comparados (é preciso ser competitivo à escala global), daí a exigência de mais um dia de trabalho semanal sem qualquer compensação contratual (mesmo reduzida), apesar de, aparentemente, ao arrepio de toda a racionalidade económica. E quando se sabe que os custos laborais apenas pesam no produto final cerca de 5% (!!!), não é possível evitar mesmo a dúvida sobre as reais intenções dos que a este expediente recorrem.

Estava anunciado, era uma questão de tempo. E o tempo tem vindo a revelar, agora a coberto de uma crise que tudo explica e desculpa, as estratégias que se vão já tecendo para o futuro e sob as quais se desvendam (não há como escondê-lo!) os propósitos de sempre: a crescente precarização dos vínculos laborais; a continuada degradação das condições de funcionamento do trabalho, sujeito à permanente chantagem do capital; a lenta mas persistente erosão do emprego, sem retorno à vista; a cada vez maior fragmentação da gestão das empresas e a consequente exclusão dos trabalhadores de lugares de decisão, sob o pretexto de se tratar de matérias altamente especializadas.

Mas o exemplo da Auto-Europa acaba por ser sobretudo esclarecedor do funcionamento tripartido da relação salarial, no contexto da actual crise global, entre trabalhadores, empresários e respectivos governos. Por toda a aparte os trabalhadores, de grandes ou pequenas empresas, quando em dificuldades ou sob ameaça de despedimentos, mais do que responsabilizarem os respectivos accionistas (quem são eles? onde estão?) ou deles exigirem o cumprimento dos seus compromissos contratuais (até porque, nalguns casos, intuem, e com fundamento, dificuldades financeiras reais), voltam-se para o chapéu de chuva dos governos, quaisquer que eles sejam (todos afinal estão comprometidos com este sistema), na vã esperança de deles receberem a protecção que sabem perdida do lado do capital (ou das nebulosas forças que o ocultam).

A resposta, invariável, de todos os governos, tem sido de apoio em palavras, mas de quase nulos resultados práticos. No final, consumada a derrocada e concretizados os despedimentos, limitam-se a accionar os mecanismos de apoio previstos para cada caso, que a tanto se resume a sua responsabilidade. E fazem-no escudados (ou sob desculpa) nas leis da concorrência impostas no espaço comunitário, mas que, fora destes contextos de desespero humano, defendem com todo o vigor e não menor cinismo.

Foi a consciência desta comprovada inutilidade dos governos que, a meu ver, levou os representantes dos trabalhadores da Auto-Europa a prescindirem deste apoio pouco mais que retórico e a sentarem-se frente a frente com os seus patrões, sabendo que negoceiam em condições de grande fragilidade (a chantagem da deslocalização mantém-se permanentemente em cima da mesa), mas intuindo também que nessas negociações não estão apenas em causa as suas concretas condições de trabalho, no limite o próprio emprego: aqui joga-se sobretudo o poder de, no futuro, manterem algum controle sobre as relações salariais em que são parte; de poderem continuar a ter um papel activo na construção da sociedade a que pertencem; de continuarem, pois, a sonhar – e a lutar – por um mundo gerido com responsabilidade, com solidariedade e com justiça.

Nas negociações em curso na Auto-Europa – e decerto em muitas mais empresas pelo mundo fora – está em jogo bastante mais do que apenas o seu próprio futuro, aqui se compromete também um pouco o de todos, joga-se talvez alguma daquela globalização alternativa que importa começar a construir desde já.

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