Acabo de ouvir, mais uma vez, o Requiem Alemão de Brahms, numa versão já não muito recente de Klemperer e, como sempre, sinto-me transportado para outros universos, a realidade transfigura-se e parece ganhar outra vida. Sobretudo aquele 5º movimento, arrebatador na voz sublime de Elisabeth Schwarzkopf, elimina as últimas resistências de ligação a qualquer sensação material, uma espécie de exaltação onírica parece transcender a realidade envolvente e, por momentos, esqueço todos os problemas que me atormentam. A música é um refúgio, eu sei, e eu deixo-me conduzir pelo seu encanto.
Hesito em estabelecer óbvios paralelos entre este Requiem e os tempos actuais. De forma mais directa, à presente quadra e ao repetido ritual sagrado dos cristãos; em termos mais distantes, porventura até despropositados, ao simbolismo que é possível extrair de tudo o que se passou na Cimeira dos G20, em Londres, na semana passada.
Confesso alguma nostalgia por toda a envolvência deste período do ano, pelas reminiscências de hábitos culturais cada vez mais em desuso, pelo canto gregoriano que facilmente se lhe associa – em especial por aquela despojada melopeia do ‘Dies Irae’, agora reproduzida em inúmeras versões comerciais, mas sem o ambiente que lhe garante autenticidade e a sua razão de ser. Mas não resisto à equiparação política, não obstante, repito, o abuso da hipérbole. De facto, ‘requiem’ por quê?
Não que já tudo tenha sido dito sobre os enaltecidos resultados da Cimeira que reuniu em Londres o grosso do poder mundial. O mais que se ouviu – e ouviu-se repetidamente – foi que as expectativas foram ultrapassadas, não tanto pela excelência dos mesmos, mas porque aquelas eram baixas. Perpassa, atrevo-me a dizer, mesmo entre os mais eufóricos na exaltação dos seus efeitos, um certo sentimento de frustração, como se o alívio que transpira das suas auspiciosas palavras exigisse algo de mais substancial que os muitos milhões das medidas anunciadas. Também porque, a par destas, a par dos resultados visíveis produzidos, algo permanece na penumbra ou até mesmo na completa ignorância, percebe-se que há decisões que só podem entender-se se lidas nas entrelinhas – ou para além delas.
Sobre os primeiros – os efeitos anunciados ou à vista de toda a gente – o principal ou o que mais duradouras consequências pode vir a provocar é de natureza mais psicológica que material e desenvolve-se em torno do ‘efeito Obama’. Tanto pelo estilo pessoal na quebra da crispação existente (herança de Bush), como pela capacidade de liderança nas orientações transmitidas (nos diversos domínios, da economia ao ambiente, às relações internacionais,...), Obama excedeu as expectativas de muita gente (incluindo as minhas), sobretudo pelo caminho aberto entre uma empertigada ortodoxia europeia, incapaz de evoluir seja a nível do protocolo, da economia ou da visão do mundo.
Quanto aos segundos – a importância dos bastidores – atrevo-me a pensar que o principal protagonista do encontro (tanto ou mais que Obama, logo o saberemos), terá sido a China, cujo papel se torna difícil de avaliar por enquanto. Discretamente, como lhe é apanágio e condiz com o estilo oriental (não obstante o numeroso séquito de que a sua delegação se fez acompanhar), chegou e, parece, teve o condão de ‘pôr ordem’ numa casa que, tudo o indicava, estava longe de se considerar arrumada. De concreto pouco se sabe do papel desempenhado, mas que ele foi de relevância fundamental para o resultado final não parecem restar dúvidas. A que preço? Quais as contrapartidas? Qual o papel deste emergente colosso no futuro das relações internacionais?
Vou voltar a ouvir o ‘requiem’ de Brahms, desta vez não ainda, como gostaria, um ‘requiem’ pelo passado de um mundo que se recusa a mudar, que, ao invés, continua a garantir a opulência e o desperdício 'por contraste com a miséria’, a incentivar a exploração ‘por razões económicas’, que suporta a opressão ‘porque é normal, sempre foi assim’,... Ouvi-lo-ei tantas vezes quantas o exigir a exorcização do pesadelo. E sempre, posso assegurá-lo, com imenso deleite e enorme vontade de enterrar este passado que poucas saudades deixa. Não obstante, reconheço, dele subsistirem algumas felizes reminiscências de sabor cultural.
Entretanto, uma Boa Páscoa.
Descarada aldrabice
Há 7 horas
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