Esta série de comentários sobre a ocupação do tempo e o emprego, pretendeu destacar, mais uma vez (havia abordado este assunto em Jul.-Ag./08), a importância que assume na actual fase de desenvolvimento das sociedades, enquanto tema charneira do processo de reorganização social em curso, agora acentuada pelos efeitos devastadores, precisamente para o emprego, da presente crise global: a luta social pelo domínio do tempo, pela faculdade de cada um passar a dispor do seu tempo face à sua apropriação pelos detentores do poder económico.
Na verdade, aquilo que se designa por reconversão técnica do capitalismo, que se admite ter sido um dos obreiros desta crise (através da revolução tecnológica), centra-se sobretudo na disputa entre o trabalho e o capital pela apropriação da mais-valia gerada nas novas condições de produção, e expressa-se, em boa medida, na capacidade que cada um deles manifesta, em determinado momento, pelo controle do tempo de trabalho.
Não parece fácil (para alguns nem sequer é muito sensato, tal a desproporção de poder entre o trabalho e o capital), ousar afrontar a organização social estabelecida, tendo em vista, apenas e tão só, uma melhor repartição dos benefícios proporcionados pela tecnologia (sobretudo os derivados da automação e do aumento da produtividade).
E, contudo, nada se afigura mais óbvio nem mais premente, como parece deduzir-se logicamente da mera análise factual da realidade presente:
- É óbvia a tendência histórica para a inelutável redução do tempo de trabalho, por efeitos da automação – a multiplicação de tempos e postos de trabalho que não acrescentam nada à cadeia produtiva, a par da deslocalização de actividades, apenas tem conseguido adiar ou atenuar os efeitos dessa tendência;
- Torna-se premente, em consequência, proceder a uma urgente redistribuição do tempo de trabalho, única solução capaz de viabilizar o emprego e eliminar os elevados níveis de desemprego e, do mesmo ponto, a debilidade da procura efectiva, causa directa e imediata da persistência da crise actual.
Contudo, se as condições técnicas proporcionam, fundamentam e até exigem uma melhor acomodação do tempo de trabalho às impressionantes capacidades produtivas hoje disponíveis, o facto é que as condições políticas e sobretudo as económicas não parecem susceptíveis de ceder perante aquilo que, afinal, até poderia significar um novo fôlego para o sistema (incluindo novas oportunidades abertas pela ocupação dos tempos livres). Por força, nomeadamente, do famigerado paradigma económico assente na ideologia do crescimento contínuo e na lógica produtivista, cujos interesses que o suportam se revelam incapazes de reconhecer a inviabilidade, a prazo, de tais pressupostos – porque baseados em recursos limitados – parecendo apostados em precipitar-se numa perigosa e inexorável escalada para o abismo.
Nem sequer se exige imaginação para adiantar propostas que permitam concretizar essa mais que indispensável redistribuição do tempo de trabalho. Afinal, nada disto é inédito: bastaria retomar-se a tendência de redução da ‘jornada’ de trabalho manifestada ao longo da curta história do capitalismo – aprofundada no período keynesiano com as designadas semanas ‘inglesa’ primeiro, ‘americana’ depois; interrompida com o advento do neoliberalismo de Teatcher e Reagan – agora, por hipótese, para as 30 horas semanais (passível de múltiplas variantes). Desejavelmente esta poderia vir a ser mesmo a grande alteração estrutural produzida na sequência da crise (à parte alguns ajustamentos na área financeira, não são expectáveis quaisquer outras grandes reestruturações). Decerto imposta mais por força das condições, económicas, técnicas e sociais, que em resultado de decisões políticas livremente assumidas e programadas.
Dir-se-á que tudo isto é de uma confrangedora banalidade. É verdade. Que tudo isto não passa de utópicos devaneios. Pode ser. Só não se percebe porque se deparam então tantas resistências à sua aplicação, porque é que se permitiu que aquela tendência fosse interrompida nos últimos 30 anos! Paira até a secreta convicção, nos meios obviamente interessados em que nada mude, de que tudo isto em breve irá voltar à ‘normalidade’. Sobretudo porque apostados no confronto desta banal utopia com a realidade actual de uma globalização subordinada à máxima ‘pensar global, agir local’, ou seja, as decisões locais só têm condições de êxito desde que enquadradas globalmente. Mas vai haver uma altura em que também aí os limites serão atingidos, em que a fuga ao inevitável não será mais possível. Resta saber se é já chegado o momento. Em breve então se perceberá.
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