Nos últimos dias vem-se assistindo à mobilização de todo o aparato litúrgico do ‘mercado’ – numa operação equivalente à da ‘viagem do Papa a Fátima’ – contra o que se considera ser o sacrilégio da intromissão do Estado na economia, por via das designadas ‘Grandes Obras Públicas’. Feita, claro, em nome do saneamento financeiro do País, para não agravar a dívida pública, por estes dias objecto de enorme exploração especulativa (e não menos mediática). Cumpre-se a interminável ‘Via Sacra’ dos sempre inevitáveis comentários de políticos, advogados, jornalistas e outros colunistas, dos sempre fundamentados pareceres de economistas, arquitectos, empreiteiros e demais engenheiros, do sempre esfíngico presidente e até do eterno putativo ‘rei’, todos perorando para além do que a respectiva formação ou experiência recomendaria em tal causa, de repente investidos pelos media no sacrossanto papel de especialistas na matéria.
Não que a opinião de todos e de cada um não possa – não deva – ser exposta, mas desde que o seja apenas enquanto... opinião. Pretende-se, contudo, fazer passar a ideia de se tratar de apreciações meramente técnicas que não admitem alternativa... técnica - qualquer outra solução só por razões ideológicas ou políticas. Mas é mesmo de opções políticas que aqui se trata, mais que de opções técnicas, ainda que estas apareçam agora envoltas em piedosas intenções sobre o não agravamento da despesa e da dívida pública, procurando-se assim desviar as atenções do essencial, o de servirem o objectivo de se concluir o desmantelamento do Modelo Social – que passa, desde logo, pela retirada completa do Estado da vida económica. Quando o principal problema do país dos últimos 10 anos (responsável em boa parte pelo elevado déficit das contas públicas) se centra no crescimento económico – no âmbito das prioridades definidas pelo próprio sistema – na ausência de investimento privado capaz de relançar a actividade produtiva vir contestar-se qualquer esforço público nesse sentido, parece, no mínimo descabido. Mas isso já daria pano para outros lençóis...
Nos últimos dias acentuou-se ainda mais a percepção de que sobre nós paira – e impera – essa entidade misteriosa e dominadora, omnipresente e implacável, quase asfixiante no condicionamento de todas as decisões da vida colectiva (‘sedenta de sangue’, ouviu-se até...): ‘os mercados’! ‘O mercado é soberano’, ‘os mercados gostam’ (ou ‘não gostam’!), ‘o mercado teme’..., são algumas das expressões antropomórficas com que se tenta pintar uma realidade que parece completamente fora do controle das autoridades públicas. Entregues a essa entidade abstracta, com poderes de divindade justiceira, as sociedades perderam qualquer capacidade democrática de decidirem sobre os seus destinos e o dos seus povos.
Por trás dessa entidade abstracta, é certo, perfila-se toda uma plêiade de sociedades, fundações e demais organizações, suportada por uma misteriosa cáfila de analistas e gestores, homens sem rosto, acólitos de uma tão estranha quanto perniciosa liturgia, sem se saber muito bem onde acabam os poderes da divindade e começam as malfeitorias dos seus serventuários. Qualquer veleidade de controle democrático destas instâncias, esbarra na arrogância de um discurso ideológico arvorado em ‘Tábuas da Lei’ da actualidade, de uma lei refutada de forma categórica pelos irredutíveis acontecimentos da ‘Crise’. Passado o susto inicial, porém, tudo parece retornar à normalidade imposta por esse moderno ‘bezerro de ouro’!
Bem elucidativa a explicação, adiantada até por fervorosos acólitos domésticos desse aparato litúrgico, de que o ‘arrastar dos pés’ da Srª Merkel na questão da Grécia, se deveu ao medo de contrariar o povo – a votos numa eleição regional! É isso: o que conta é o interesse imediato, o mais importante é o próximo acontecimento, o receio de uma eventual derrota nas eleições. Sobrepõe-se a vantagem imediata vislumbrada no momento presente a todos os efeitos negativos que a manutenção da actual vaga especulativa sobre alguns dos membros do Euro, inevitavelmente, implicará também para a Alemanha,... a mais longo prazo!
Os últimos dias acabaram, pois, por evidenciar, se dúvidas havia, a verdadeira natureza deste sistema: a primazia do interesse imediato (o lucro, por ex.)! Porque o capitalismo é isto: vive do momento, não olha para o futuro. Como mais uma vez ficou comprovado: das ‘obras públicas’ que visam preparar o futuro (a discussão sobre a bondade intrínseca de cada uma delas encontra-se inquinada desde o início), ao deliberado arrastar da solução para a Grécia.
Porque, verdadeiramente, o futuro (longínquo) não interessa ao capitalismo, só o instante – o momento – conta: tanto na política, como na economia, como no ambiente,... Porque é este, afinal, o verdadeiro pasto da especulação – e o 'ambiente' mais propício aos predadores que nela se (e a) suportam.
Nos ombros de gigantes
Há 17 horas
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