quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Crise? Qual crise?

III – A regulação ‘automática’ do mercado

Ao longo dos últimos anos, um dos mais lúcidos intérpretes da teoria económica tradicional, o prémio Nobel Joseph Stiglitz, tem multiplicado os avisos sobre os riscos sistémicos derivados da persistência na cegueira demonstrada pelo fundamentalismo do mercado. Em ‘Tornar eficaz a globalização’, aponta, irónico, a necessidade de ‘salvar a globalização dos seus defensores’, expressão premonitória que, perante os últimos acontecimentos, soa quase como um presságio de catástrofe eminente. Aí e a propósito da Grande Depressão, partindo da reacção dos conservadores de então às propostas de Keynes de fazer intervir o Estado na economia para a reanimar, adianta mesmo que este “fez mais para salvar o sistema capitalista do que todos os financeiros pró-mercado juntos”.

Não admira, pois, que muito recentemente e já depois da eclosão da actual crise financeira na América, tenha vindo a insistir na necessidade de um regresso ao ‘antigo sistema’ económico (leia-se, keynesiano), dado que a crise actual representa o fim de "um modelo económico desastroso" e, sobretudo, o fim da crença que "os mercados livres e sem regulamentação funcionam sempre".
Não surpreende, portanto, que a solução mais apontada para os desvarios financeiros do sistema seja a de se proceder ao reforço da regulação do mercado e do papel dos reguladores económicos como forma de evitar os seus excessos.

Contudo e como já se deixou perceber antes, o condicionamento do mercado através do controle estabelecido por entidades reguladoras ao seu funcionamento normal, não obstante o entendimento unânime de corresponder ao desempenho de uma função social e política vital, constitui um elemento espúrio à própria lógica de valorização da mercadoria – a essência ou a própria razão de ser do mercado – sendo por isso mesmo fonte de insanáveis problemas. Com efeito, se, por um lado, consegue proporcionar um ambiente ‘civilizado’ à sociedade mercantil (por contraponto com o que decorreria da ‘lei da selva’ caso fosse aplicado mecanicamente o automatismo do mercado) que ninguém ousará pôr em causa, nem mesmo os seus detractores mais liberais, por outro, garante o desencadear de todas as diatribes e conflitos contra a intervenção do Estado (enquanto primeiro responsável pelos reguladores) na vida económica e social, normalmente sob pretexto de excesso de regulamentação burocrática e consequente perda de eficácia das acções sobre que incidem.

É esta dicotomia ambivalente, que resulta do facto de o suposto sistema de regulação automática exigir, para poder funcionar de forma credível e transmitir confiança, a supervisão de um dispositivo de reguladores, que se encontra na origem de inúmeros equívocos e é, por isso, objecto de intensa controvérsia sobre os limites de actuação respectivos entre os que propugnam uma maior liberalização do mercado e os que defendem o seu controle apertado. Sem que, contudo, uns e outros se atrevam a contestar a lógica essencial da sociedade mercantil, a valorização da mercadoria.

Já antes, na sequência da convulsão – económica, social e política – provocada pela Grande Depressão nos ‘anos 30’ do Séc.XX, a solução esteve no recurso às fórmulas da teoria keynesiana (com influência determinante na prática do New Deal de Roosevelt), opondo-se ao até aí intocável livre-câmbio da teoria clássica e fazendo intervir o Estado na esfera económica, através de programas maciços de investimentos públicos, como forma de reanimar a procura e induzir todos os efeitos multiplicadores daí resultantes. E é como corolário lógico da adopção dos princípios intervencionistas, que começam então a impor-se mecanismos de controle do mercado, a nível normativo e institucional, aqui se incluindo os instrumentos de regulação económica (reguladores externos) como forma de impedir os seus inevitáveis excessos quando apenas deixado entregue a si próprio (auto-regulação).

Contudo, a fórmula que contém a solução para a salvação do sistema parece encerrar também o vírus que o pode levar à destruição.
(...)

1 comentário:

Carlos Borges Sousa disse...

Ora, depois dos três primeiros capitulos de "Crise? Qual crise?" só posso, agora e com expectativa, aguardar pelo IV ...
Excelente "postagem"
CBS