IV – ‘Risco moral’ e mercados tutelados: o sistema à beira da implosão?
Se a teoria keynesiana e a intervenção do Estado na vida económica salvou o capitalismo de uma anunciada e eminente derrocada aquando da Grande Depressão, o certo é que introduziu no sistema o vírus de que lhe será impossível escapar: a partir daí não mais a economia pôde ser considerada autónoma, não mais a iniciativa privada se conseguiu libertar da tutela e do apoio públicos, o controle do Estado – seja directamente ou por via dos reguladores – passou a integrar de forma indelével o próprio sistema. Mesmo que o seja apenas sob a forma do que se designa por ‘risco moral’ (ver Harry Shutt, in ‘O declínio do capitalismo’), ou seja, a percepção entranhada na sociedade (e assumida pelos empresários) de que o Estado cobrirá eventuais grandes prejuízos inerentes à sua actividade, nomeadamente na área financeira, com o fundamento de se evitarem possíveis situações perigosas de bancarrota e a consequente desintegração social. Mais: não sendo já possível libertar-se dessa tutela, esta irreversível dependência poderá vir a traduzir-se em progressivo declínio e na sua destruição.
Sem dúvida que as três décadas do pós-guerra (até 73) constituíram, com a orientação da teoria keynesiana e o chapéu de chuva dos reguladores, o período de maior expansão económica do sistema capitalista – o dobro da média histórica global! A recessão mundial de 74-75, provocada pelo crescente aumento da inflação e agravada pelo quadruplicação súbita do preço do petróleo em Out.73, veio pôr em causa esta fórmula aparentemente milagrosa. Assistiu-se então a novas investidas da ideologia liberal e à sua aplicação prática em duas experiências políticas relevantes: os EUA de Reagan e o Reino Unido de Tatcher. Irrompeu triunfante o neoliberalismo, pondo em causa os fundamentos da teoria keynesiana e impondo novos cânones económicos e políticos.
A base deste novo surto de liberalização (daí a designação de neoliberalismo, por contraste com o liberalismo clássico) assentava no princípio da desregulação económica e sobretudo financeira que, diziam, iria permitir libertar, em plenitude, as energias da sociedade através do funcionamento sem quaisquer condicionamentos do mercado. No limite desta teoria, as sociedades seriam regidas pelas ‘forças do mercado’ (e não pelas instituições democráticas, sujeitas à degenerescência burocrática), em nome do princípio da competência técnica considerado superior à política. O Estado técnico reger-se-ia por uma espécie de constituição económica, com base nas normas ditadas pelo mercado, que perde assim o estatuto de instituição humana para revestir o carácter quase divino de emissor de decisões irrevogáveis.
E tudo isto sem a redução do papel do Estado na Economia. Com uma alteração profunda: em lugar do ‘apoio social’ (em benefício da sociedade em geral), passou a haver o ‘apoio às empresas’ (seja através de intervenções directas – subsídios, subvenções ou garantia da sua manutenção – seja por via indirecta dos incentivos fiscais) no declarado propósito da criação de condições de dinamização da economia de que, presume-se, todos beneficiariam.
Passados 30 anos do início deste processo e da aplicação universal destes princípios – a globalização neoliberal – os seus efeitos ou resultados principais revelam-se dramaticamente desastrosos: dilatação e intensificação das desigualdades sociais, agravamento da falta de segurança económica dos cidadãos, crescente marginalização dos países pobres; a par da queda da produtividade global e da aceleração das crises, sobretudo financeiras. A criminosa indiferença com que estes efeitos (sobretudo os primeiros) têm sido encarados pelo mundo em geral, só foi quebrada com a eclosão e a dimensão da última destas crises financeiras – a actual – por ameaçar levar o planeta à beira da catástrofe.
Mercado selvagem ou mercado regulado (ou tutelado, para onde agora caminha) – eis, pois, o dilema em que parece aprisionada a sobrevivência do sistema. Porque se, na coerência dos princípios, escolhe manter as normas do mercado livre – ou seja, o mais liberto possível de quaisquer ‘normas’ – o seu destino lógico só o pode conduzir ao capitalismo selvagem e, no limite à autodestruição (desde logo porque os recursos são limitados – e essas ‘normas’ tudo fazem por ignorar este facto elementar!); se, pelo contrário, opta pela via mais civilizada – e segura, a única que, para já, lhe garante a sobrevivência – do mercado regulado, sob a tutela do Estado, enquanto entidade competente na fixação das regras de funcionamento (regulação e controle do mercado), isso só pode significar a sua lenta descaracterização e gradual declínio.
(...)
Um parágrafo, dois gráficos, algumas palavras.
Há 13 horas
1 comentário:
Excelente(s) posta(s), todas elas, do "Crise ? Qual crise ?"
Resta-me, entretanto e naturalmente, o próximo futuro capítulo.
Enviar um comentário