sábado, 27 de setembro de 2008

Ainda o Relatório da Human Rights Watch sobre a Venezuela


A Human Rights Watch(HRW), organização não-governamental com sede nos EUA, que se define como defensora dos direitos humanos, divulgou um relatório sobre os direitos humanos na Venezuela intitulado "A Decade Under Chávez: Political Intolerance and Lost Opportunities for Advancing Human Rights in Venezuela," - Uma década sob Chávez: intolerância política e oportunidades perdidas para fazer avançar os direitos humanos na Venezuela.

As conclusões do relatório da HRW enfureceram o Governo da Venezuela que expulsou o representante da organização, o chileno José Miguel Vivanco.
Do meu ponto de vista, esta irritação é justificada.

Qual é o ponto de partida da análise da HRW? É este:

«discriminatory policies that have undercut journalists’ freedom of expression,workers’ freedom of association, and civil society’s ability to promote human rights in Venezuela»

«it focuses on the impact that the Chávez government’s policies have had on institutions that play key roles in ensuring that human rights are respected: the courts, the media, organized labor, and civil society.»

Excertos retirados do sumário executivo.

Ou seja, a HRW avalia a situação dos direitos humanos na Venezuela considerando ter havido politicas discriminatórias que limitaram a liberdade de expressão dos jornalistas, a liberdade de associação dos trabalhadores e a capacidade da sociedade civil de promover os direitos humanos na Venezuela. Põe o enfoque, nas suas palavras, em instituições que desenpenham um papel chave na garantia pelo respeito dos direitos humanos: os tribunais, os media, o trabalho organizado, e a sociedade civil.

Do meu ponto de vista, as conclusões deste relatório são tendenciosas e profundamente enviesadas, reflectindo uma visão da Venezuela que se confunde com a perpectiva dos sectores privilegiados da sociedade venezuelana. Para além disso, o "timing" da sua publicação segue um padrão já verificado anteriormente: surge a menos de 2 meses de importantes eleições para governadores de Estado e "alcaides".

No entanto, o próprio relatório da HRW reconhece pontos positivos muito importantes, mas nas conclusões valoriza-os de forma desigual

Então analisemos os "key players", segundo a HRW:

MEDIA

«One area where the government’s media policy has produced positive results is broadcasting at the community level. The government has actively supported the creation of community radio and TV stations, whose broadcasting contribute to media pluralism and diversity in Venezuela.»

Apesar de reconhecer como aspecto positivo, a HRW não dá a devida importância a este aspecto - a expansão das rádios e TV's comunitárias - que no fundo é talvez o mais importante de todos ao nível dos media porque permite à maioria da população, incluindo a que vive nas favelas (designadas por "barrios") falar dos seus problemas e contribuir para sua resolução.

Esta realidade das rádios comunitárais tive oportunidade de a constatar em viagem recente ao país.

Mais uma vez a HRW valoriza o caso da RCTV, emissora que não viu renovada a licença de emissão no espaço público radioeléctrico (que, relembre-se, é um recurso escasso) num acto legítimo do Governo da Venezuela. A propaganda sugere que a estação foi encerrada, o que é falso. A estação emite agora por cabo. A verdade é que o espaço das frequências estava praticamente monopolizado por TV's privadas cujos conteúdos pouco tinham a ver com a realidade nacional.

De qualquer modo, quem quer que visite a Venezuela pode constatar a total liberdade de expressão, com inúmeros grandes jornais da oposição e vários canais de televisão da oposição de cobertura nacional.

Manifestamente, não compreendo este aspecto do relatório da HRW.

MOVIMENTO LABORAL / SINDICATOS

«However, firing workers who exercise their right to strike, denying workers their right to bargain collectively, and discriminating against workers because of their political beliefs does not promote union democracy.»

Isto é absurdo! Eu estive em plena campanha eleitoral para o sindicato da SIDOR e as listas candidatas eram inúmeras. Quem lê isto ainda pensa que as condições laborais eram melhores antes!

O ministro do trabalho respondeu assim:

«Labor Minister Roberto Hernández emphasized the historical context, saying that past governments "divided the labor movement by way of murder, torture, and jailing. There are fifty years of division that we are trying to reconstruct.»

De facto, no caso da SIDOR, foram os trabalhadores que exigiram a sua nacionalização a que o governo deu cobertura. Sucede, por vezes, que a repressão dos trabalhadores é feita por autoridades estaduais, por vezes ligadas a interesses locais. Nunca como agora, o movimento sindical teve tanta liberdade e representatividade.


«It has fired and blacklisted thousands of workers in the state oil company who engaged in legitimate strike activity, and later threatened to remove all remaining workers who did not support Chávez.»

Este é um dos pontos que revela a má-fé do relatório da HRW. Qualifica como "legítima actividade grevista" o lock-out convocado pelo Patronato (Fedecámaras) havido durante cerca de dois meses entre 2002-2003 designado por "Paro Petrolero".

Tratou-se de uma verdadeira sabotagem económica! Apoiada por sindicatos pouco representativos, para não dizer corruptos. Nunca os EUA ou sequer Portugal admitiriam uma "greve" daquela natureza, que provocou uma recessão profundíssima, com uma quebra de 24% do PIB!!!

"The oil strike sent the economy into a severe recession, during which Venezuela lost 24 percent of GDP."

É preciso ter em conta a realidade venezuelana onde a economia paralela representa quase 50% do PIB, e, portanto, onde o nº de trabalhadores sindicalizados é mínimo, representando um sector privilegiado, e sobretudo aqueles da PDVSA (petrolífera nacional).

Tratou-se, portanto, de um movimento político e não laboral:

»Sin embargo, la situación experimentada en Venezuela entre diciembre de 2002 y febrero de 2003 no se configura legalmente dentro del concepto internacionalmente aceptado de huelga, ni en ninguna de sus categorías.»

«Sin embargo, los motivos que perseguía la convocación de este Paro Petrolero nunca fueron laborales, sino que más bien políticos, toda vez que el objetivo fue presionar al presidente Chávez para que sustituyese su política económica de corte socialista por una más proclive al libre mercado»

A SOCIEDADE CIVIL

«Yet, while it is reasonable for a government to investigate and prosecute credible allegations of criminal activity, as well as to regulate foreign funding of civil society groups to promote greater transparency, these measures have gone beyond these legitimate forms of accountability and regulation.»

De facto muitas organizações americanas, sob a capa de ONG’s, não fazem mais do que financiar sectores da oposição, que ao invés de defenderem os interesses da Venezuela, defendem na realidade os interesses externos representados por minúsculas elites. Também tive a oportunidade de o constatar pessoalmente, para meu sincero choque, numa reunião com um dos líderes da oposição, Sales Romer, que supostamente até será dos mais moderados!

Uma delas é a NED (National Endowment for Democracy), as tais que procuram o “democracy building” à bomba e pró-mercado!

A SEPARAÇÃO DE PODERES

A HRW acusa que a partir do golpe de 2002, os sectores chavistas tomaram conta dos tribunais, acabando com a isenção, apesar de reconhecer a revolução operada no sistema judicial com a chegada ao poder em 1999.

Se é assim, como se explica que o Governo de Chávez tenha perdido o referendo sobre a nova Constituição, realizado em Dezembro de 2007? A ser verdade o que diz a HRW, e tendo em conta a pequena margem do "Não", não teria sido dificil falsificar os resultados em favor do "Sim".

POR FIM

Há um aspecto interessante neste tipo de ONG’s de direitos humanos com base nos EUA. É que consideram/valorizam como direitos humanos praticamente e apenas, tal como aliás o Governo dos EUA (que nunca ratificou a Convenção das Nações Unidas sobre Direitos económicos, sociais e culturais) os direitos políticos e cívicos.
Ou seja, pouco importa que se viva na miséria e ignorância desde que a lei permita que se vote, como se fosse possível exercer uma cidadania responsável naquelas condições.




4 comentários:

Carlos Borges Sousa disse...

Saúdo, e com natural satisfação, a tua primeira "entrada" no Blogue; e logo, com uma questão que é, e em meu entender, muito pertinente considerando o défice de informação que grassa, por aqui, sobre a questão dos direitos e liberdades na Venezuela.
Excelente "postagem", muito bem fundamentada, tal qual nos habituaste no "Futuro Comprometido"

José M. Sousa disse...

Faltou mais este caso:

«Orlando Chirino, a coordinator of Venezuela's largest union federation, the National Workers Union (UNT), which critically supports the Chávez administration, told the Independent Media Center Tuesday that "in Venezuela labor rights are violated in the private and public sectors," and concluded that "this is the norm in capitalist countries, and Venezuela is no exception."

The HRW report featured a labor dispute Chirino was involved in as one of its examples of labor rights violations in Venezuela.»

A HRW dá como exemplo de violação dos direitos laborais, o caso de Orlando Chirino.

Este responde, com lucidez, que, como em qualquer outra economia capitalista (a Venezuela não é excepção) há problemas laborais no sector público como no privado. Note-se que Orlando Chirino apoia - criticamente, como é natural - o governo de Chávez.

Anónimo disse...

Trata-se de uma análise que, tanto pela importância do tema como pela fundamentação da investigação feita sobre o mesmo, merece uma leitura atenta, até porque ajuda a desfazer alguns preconceitos. Desde logo por recordar factos essenciais deste complicado processo venezuelano: por exemplo, o ‘paro petrolero’ de 2002/03 não passou de um ‘lockout’ da indústria (por razões estritamente políticas) e, portanto, devia ser considerado ilegal, coisa que a HRW faz por esquecer (de forma desonesta, acrescento eu), dele extraindo conclusões no mínimo abusivas.
Além do mais, não se pode ignorar que tudo o que respeita à Venezuela é imediatamente filtrado no Ocidente a partir de uma imagem criada (pouco interessa aqui se com ou sem fundamento) sobre o Chavez. Ora, independentemente do valor intrínseco do trabalho feito por este tipo de organizações (e, a avaliar por esta amostra, nem sempre de forma isenta e correcta), importa sobretudo ver o tratamento ou aproveitamento que é feito pelos media na base desse estereótipo existente a propósito de qualquer notícia, comentário ou estudo sobre a situação venezuelana. Serão certamente apenas destacados os aspectos negativos, até para encaixarem nessa imagem, reforçando-a.
Mas destaco sobretudo a conclusão: a sistemática sobrevalorização dos aspectos formais da democracia (importantes, sem dúvida) sobre o seu conteúdo real – estômagos bem nutridos a perorar sobre as necessidades de estômagos vazios. Lamentável, mas na América (e no Ocidente, em geral) as maiorias ainda são formadas por gente assim!
Vai levar tempo a dar a volta. É esse o lado benéfico das crises, ajudam a (re)pensar ideias feitas e a pôr em causa situações aparentemente definidas.

José M. Sousa disse...

Este processo da Venezuela, creio eu, deve ser dos mais interessantes a decorrer em todo o mundo. Daí que não seja fácil traduzi-lo em meia dúzia de parágrafos.

Outra coisa que faltou dizer, a propósito das instituições, foi a amnistia concedida aos golpistas de 2002, que passou ao lado da HRW.

«President Chávez last year pardoned political opponents who backed a failed 2002 coup against his democratically elected government. "It's a matter of turning the page," Chávez said. "We want there to be a strong ideological and political debate -- but in peace."»