A persistência do que os ‘especialistas’ gostam de apelidar de ‘turbulência dos mercados’ teve, nos últimos dias, desenvolvimentos bruscos (mas não inesperados) que quase ameaçavam transformar-se em pânico generalizado. Valeu na emergência, mais uma vez, a intervenção do Estado – o Tesouro Americano (a par do ‘isento’ FED), o BCE,... – para, na terminologia dos mesmos ‘especialistas’, ‘acalmar os mercados’ e repor alguma da confiança perdida.
A intervenção do Estado consistiu, mais uma vez, na receita do costume, ou seja, na injecção maciça de capital sobre os ‘buracos económicos’ gerados, dizem, pela ‘ganância, corrupção e falta de ética’ dos gestores implicados. Em termos objectivos, porém e independentemente da apreciação moral dos actos praticados e dos actores envolvidos, tratou-se, mais uma vez, da utilização de recursos públicos na cobertura de danos privados, em suma, da aplicação descarada da fórmula em que presentemente assenta a sobrevivência do sistema: privatização dos lucros, socialização dos prejuízos.
As notícias dando conta dos escandalosos ‘prémios de produtividade’ que, no último exercício (na sequência, aliás, de uma prática que a gestão das grandes corporações vem seguindo há décadas), os gestores das empresas precisamente agora em dificuldades e objecto da referida intervenção estatal se auto-atribuíram, só surpreendem quem mesmo acredita que o sistema é bom e funciona (aperfeiçoável, concedem – ainda não inventaram outro melhor, apressam-se a argumentar!) e que o problema radica na tal ‘ganância,...’ de alguns gestores menos escrupulosos e falhos de ética. Se outros lá estivessem, couraçados com os tais princípios éticos...
Desta vez, o que mais surpreende é mesmo a dimensão da resposta estatal à crise – de tal modo que as Bolsas de todo o Mundo reagiram em fortíssima alta (a maior dos últimos 30 anos!), logo que foram conhecidos pormenores do modelo a aplicar. Na eminência da crise alastrar, em cascata, a todo o sector financeiro, o Governo dos EUA, apoiado pela maioria democrática do Senado, decidiu avançar com uma proposta de constituição de uma Agência Estatal destinada a sanear os activos de má qualidade no sector bancário, no âmbito de um programa mais vasto (e envolvendo somas astronómicas), cujo objectivo é suportar aquelas empresas que, no seu entender, maior influência exerciam sobre todo o sistema e cuja falência, a verificar-se, provocaria o seu desmoronamento.
Em Março tinha sido o Bear Sterns, em Julho os Fannie Mae e Freddie Mac (os Dupond e Dupont das empresas?), agora – e depois de deixar ‘cair’ essa impoluta instituição que se supunha acima de quaisquer borrascas, o Lehman Brothers (atravessou 150 anos de História e até resistiu ao crash de 29!) – não teve outro remédio senão mandar às urtigas os princípios neoliberais com que enchiam a boca para o exterior (internamente há muito que não é assim – se é que alguma vez o foi!) e evitar a falência da AIG, o maior gigante segurador do Mundo!
Ora, as medidas já tomadas, juntamente com as que se anunciam, só pode significar a nacionalização forçada de uma boa parte da economia – precisamente no país que se afirma o paladino do liberalismo económico e que mais exorciza, nos outros, tais práticas... Atingido o liberalismo no coração da doutrina – em causa, de repente, os sacrossantos dogmas de eficácia do mercado, espírito competitivo (pelo menos na sua versão mais agressiva, como vinha a ser estimulado), selecção dos mais capazes, abalada mesmo a fé na iniciativa privada – o sistema procura salvar-se da bancarrota, recorrendo, mais uma vez, às velhas fórmulas keynesianas!
Mas será que os princípios da tão propagandeada ideologia liberal (ou neoliberal, para sermos mais precisos) foram assim tão vilipendiados por estes actos desesperados? Hoje falamos de quê quando falamos de ‘mercado livre’? Ou ainda, qual o sentido da tão debatida oposição ‘mercado livre – mercado regulado’?
Questões, estas e outras, que merecem agora um pouco mais de atenção – algumas delas, por isso mesmo, se procurarão trazer aqui em próximos comentários.
3 comentários:
Sobre este assunto, é deveras significativo - vindo de quem vem- este artigo de Martin Wolf (editor do Financial Times).
Este vídeo humorístico sobre a crise é excepcional
Pese embora a grande seriedade do assunto, não deixa, ainda assim, de ser hilariante os comentários dos costumeiros "especialistas" da nossa praça que, e quanto ao essencial, estão de acordo :
privatização dos lucros, socialização dos prejuizo...
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