Confesso que, na altura em que foi proferida, pouca importância atribuí a tão disparatada proposição. Talvez o já adiantado da hora explicasse a sua desvalorização, ou então talvez não fosse mesmo para levar a sério – não obstante ter tido, de imediato, entusiástica aceitação de um respeitável general do exército português (o que bem pode ser levado à conta dos óbvios benefícios militaristas dela decorrentes). Ou ter-se-á deduzido tratar-se apenas de um estouvado arroubo académico da proponente. Mas o desaforo do alvitre, pronunciado em tom sério, perante um auditório previsivelmente ainda considerável (mesmo atendendo ao adiantado da hora), sem que ninguém se atrevesse a questioná-lo, ou sequer a levantar qualquer dúvida, deu-me que pensar.
Tenho vindo, pois, a matutar, ultimamente, nessa opção estratégica que Fátima Bonifácio, quase no final do programa ‘Prós e Contras’ da passada segunda-feira, 18 de Maio, apresentou como sendo o grande dilema, político e financeiro, com que a Europa alegadamente se confronta, hoje: ou manter o ‘modelo social europeu’ que, em boa medida, corporiza a atracção que o resto do mundo nutre pela ‘velha Europa’ – o denominado ‘sonho europeu’; ou avançar para a constituição de um forte exército europeu (!), capaz de ombrear com as poderosas máquinas de guerra das principais potências militares (USA, China, talvez a Rússia,...), caso ainda aspire a assumir papel relevante na cena internacional – um ressuscitado ‘sonho imperial europeu’?
Não que valha muito a pena perder tempo com os piores dislates do mais esquizofrénico neoliberalismo de trazer por casa (no fim de contas, a sua origem profunda). Ou que questione, por um segundo sequer, a correcta opção a fazer no despropositado dilema desta enfatuada diletante, mas apenas porque me interrogo como ainda é possível, depois de tudo o que aconteceu e conduziu à presente crise financeira, haver alguém capaz de apresentar em público tal opção como estratégica para a construção do futuro europeu pós-crise.
Sobretudo depois de conhecidas algumas das consequências económicas, sociais, globais,... que continuam a infernizar a vida de milhões de pessoas, sorvidas na voragem de um sistema que apregoava o céu como limite; de não se poderem ignorar os que nem por ela tiveram oportunidade de ser afectados, tal a situação de anemia social em que já vegetavam; dos muitos mais para quem, precisamente por efeitos da crise, apenas restam negras perspectivas no seu horizonte; das crescentes dúvidas sobre a sustentabilidade ambiental e social do planeta; do efeito, enfim, de amortecedor que o agora descartável ‘modelo social europeu’ constituiu para esses muitos milhões de pessoas!
E, sobretudo:
- quando os grandes problemas que emergem desta violenta crise global – confrontando a Europa (e o Mundo) na busca de soluções rápidas e viáveis – questionam de uma forma cada vez mais consensual, o próprio modelo de desenvolvimento, até agora dominante, assente num esgotado crescimento económico contínuo;
- quando os desafios se colocam ao nível da própria sustentabilidade ambiental do planeta, implicando uma inevitável e muito profunda reconversão das estruturas produtivas, a tempo de se evitarem catástrofes que deixaram há muito de pertencer à ficção científica;
- quando, em suma, as estruturas políticas parecem cada vez mais distantes dos cidadãos e dos objectivos de uma verdadeira cidadania, progressivamente desfasadas da realidade social e esta ameaça explodir a qualquer momento,
- a quem serviria então esse formidável ‘exército europeu’, sobretudo feito às expensas (ou em alternativa) do pacífico e estabilizador ‘modelo social europeu’?
Decerto um beneficiário imediato se perfilaria: o sofisticado e cada vez mais apetrechado complexo militar norte-americano, que se sabe ser um dos grandes obstáculos – ver-se-á até que ponto muito em breve – da reconversão do dito modelo de desenvolvimento em benefício de um planeta mais sustentável. Também por isso, contrapor ao ‘modelo social europeu’ qualquer alternativa militarista, seria como transformar o sonho em pesadelo, corresponderia a regredir da civilização à barbárie – ainda que uma barbárie tecnologicamente sofisticada!
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