sábado, 6 de dezembro de 2008

Um ou dois comentários pertinentes, sobre três ou quatro conceitos em voga:

I – Mercado livre, Regulação independente, Estado incompetente (?) ...

Ao longo de 30 anos de liberalismo económico desenvolveu-se a crença de que quanto menos o Estado interviesse, melhor para a economia, isso significava que as instituições eram fortes, que os mecanismos automáticos do mercado funcionavam. O importante era mesmo deixar o mercado actuar livremente, devendo o Estado afastar-se de qualquer interferência na vida económica. O método para aí chegar é conhecido – desregulamentação financeira, precarização das relações laborais, privatização de todas as áreas susceptíveis de gerarem algum lucro,... – os resultados, desastrosos de todos os pontos de vista – a nível do desenvolvimento humano, da preservação dos recursos, da sustentabilidade do planeta e do próprio ‘modo de vida ocidental’... Até as grandes inovações tecnológicas da chamada revolução informática, habitualmente atribuídas à vaga liberal iniciada nos finais dos idos 70, têm origem anterior, embora esta tenha sido por elas fortemente bafejada.

Surpreendentemente são os mais fervorosos e indefectíveis adeptos do mercado livre a solicitarem agora a intervenção do Estado e a reclamarem a organização concertada de gigantescos programas financeiros destinados a salvar da falência grandes corporações mundiais, sob o pretexto de, assim, se evitar a bancarrota e o caos social. Esta actuação, confrontada com as enormes dificuldades que o Estado, todos os Estados, sempre levantam quando se trata de libertar recursos para políticas sociais, em nome de um equilíbrio orçamental agora ignorado, tem pelo menos o mérito de:
– tornar claro a natureza de classe (não há outra forma de dizer isto...) dos Estados, todos os Estados, que ‘em democracia’ nos governam;
– retirar argumentos aos que, ainda assim, apostrofam o Estado como a origem ou causa de todas as deficiências do mercado!!!

Perante os muitos milhões de milhões injectados nos desvarios de empresas privadas (agora assim apodados, não o eram antes, é bom ter isso presente), dir-se-ia não sobrar ousadia ou credibilidade bastante para alguém se atrever a contrariar a realização de políticas públicas indispensáveis, seja no domínio social ou mesmo no económico. Puro engano, no entanto. De acordo com a doutrina tradicional em voga, ao Estado compete essencialmente a manutenção da ‘ordem estabelecida’ e o ‘normal funcionamento das instituições’, assumindo-se, acima de tudo, como o principal garante dos interesses legalmente protegidos. O que significa privilegiar sempre a ‘boa ordem económica’ – definida pelo mercado eficiente – em detrimento, por exemplo, de quaisquer ‘políticas sociais’, geradoras apenas de custos improdutivos – que, em termos da pura lógica mercantil, se traduz por ineficiência. O BCE em clara vantagem sobre o Modelo Social Europeu!

Mas, acaba de se constatar, os apoios agora concedidos para ‘salvar’ o sistema bancário, suportados pelo esforço colectivo dos impostos, são, eles também, totalmente improdutivos, destinam-se a cobrir as ineficiências de gestores zelosos, ambiciosos ou mesmo criminosos (à luz das normas estabelecidas pelos Estados), revelando que, afinal, o mercado não é aquela entidade abstracta e neutra, capaz de pairar acima e até impor-se aos interesses privados dos agentes económicos, mas antes um conceito interpretado (e manobrado) por gestores orientados sobretudo pelas suas agendas pessoais. O que esta crise acaba assim por revelar é a enorme mistificação montada em torno do mercado que, longe de ser o mecanismo automático tão ao jeito das teorias liberais, na prática demonstrou não passar de instrumento privilegiado de domínio social dos que o controlam: não só pode ser manipulado por alguns a seu bel-prazer e proveito exclusivo – com evidente prejuízo colectivo – como o seu pretenso automatismo é utilizado ideologicamente para se afirmar a sua indispensabilidade e se impor a sua aceitação universal.

E se assim é – como se afigura iniludível reconhecer-se – onde fica então a tão propalada independência dos reguladores? Ou mesmo a do próprio Estado, por via de quem são estes escolhidos?
(...)

3 comentários:

José M. Sousa disse...

Sobre os tópicos abordados aqui, é pena que ainda não tenha sido traduzido para português (em Portugal, pelos vistos já foi no Brasil), o livro do economista sul coreano Ha-Joon Chang: "Bad Samaritans"

Anónimo disse...

Deste autor, em parceria com a romena Ilene Grabel, já conhecia um outro título, publicado em português (‘Reivindicar o Desenvolvimento’). De forma sistemática e muito didáctica, os autores confrontam as soluções neoliberais propostas para o desenvolvimento, com as alternativas, dentro do sistema, que consideram mais viáveis para o atingir. A única ruptura pressuposta é mesmo com as ‘ligações coloniais’, agora estabelecidas de forma indirecta, através da imposição de um ‘modelo de desenvolvimento’ pelos países do ‘centro’, que eles não seguem (ou não seguiram), mas que insistem em aplicar aos países da ‘periferia’, servindo-se sobretudo da intervenção da tríade FMI, BM, OMC. Ruptura que se demonstra decisiva, porque rompe a lógica de exploração/dominação que alimenta o centro, enfraquecendo-o - como aliás é também evidente nesta crise.

José M. Sousa disse...

Encontrei esta recensão sobre os "Bad Samaritans" na Vírus.