sábado, 30 de outubro de 2010

Liturgia orçamental: Notas à margem do OE11 – I

A verdadeira religião: o império do mercado

Finalmente, o tema do mercado entrou no léxico corrente, pela via do costume, a mais dolorosa. Por regra, as pessoas só começam a encarar os problemas quando os sentem. A simples invocação dos ‘mercados’ sugere mais restrições, mais austeridade, retrocesso de direitos... Por enquanto, ao mesmo tempo que clamam contra os seus efeitos malévolos, tendem a aceitar, resignadamente, a tese da sua inevitabilidade: ‘os mercados é que mandam, não nos resta senão acatar’, ouve-se repetidamente. Tal como os efeitos da ira divina – ou, no correlativo, o da sua infinita bondade – também aqui os malefícios do mercado são considerados o preço a pagar para que se obtenham os muitos benefícios que lhe atribuem e se espera dele extrair.

Já tudo parece ter sido dito sobre a aberração que constitui o facto de os Estados, depois de serem ‘obrigados’ a salvar o sistema de um colapso anunciado, se verem agora ‘obrigados’ a suportar, para além do valor das dívidas então contraídas, ainda o valor de uma especulação financiada pelo BCE que era suposto dever actuar em benefício do equilíbrio financeiro da União (?). Invoca-se o argumento de que os Estados não podem alegar qualquer objecção, pois as regras de financiamento eram conhecidas de há muito, mas o certo é que é difícil aceitar que tais regras não se tenham alterado na sequência da operação de salvamento dos ditos sacrossantos mercados – porque eficientes! – , pelos ‘tenebrosos’ poderes públicos – ‘gordurosos’ e ineficientes!

Ao contrário do resto do mundo, dos EUA à China, onde os Estados continuam a suportar em boa medida enormes déficits públicos para, deste modo, minimizarem as consequências da crise financeira em termos económicos e, consequentemente, sociais, os líderes da Europa decidiram enveredar pela ortodoxia do mercado, aplicando as regras mais estritas dos cânones e liturgia propostos pelos seus mais fervorosos prosélitos. Não obstante saberem que a causa próxima na origem da crise foi a ânsia infrene de ‘desregulação’ económica – colocando todas as decisões sociais (e, por arrasto, as políticas) nas mãos dos indefectíveis ‘mercados’ – mantêm a crença na capacidade ilimitada destes para organizar as sociedades da forma mais eficiente, esquecendo (pelo menos...) e de forma deliberada, a História, a experiência e toda a investigação académica produzida sobre as imperfeições dos ditos mercados! Afirmam que o processo de liberalização e desregulamentação da economia não se encontrava concluído (!!!) quando a engenhosa criatividade tecida em torno do ‘sub-prime’ – resultado directo dessa desregulamentação – precipitou o mundo para a pior crise do século, com o sistema à beira do colapso,... pelo que advogam a necessidade de tal tarefa ser retomada e o processo concluído!

É esta a essência da liturgia criada pela nova religião imposta pelos ‘estranhos’ mecanismos sociais que nos (des)governam, na obediência, cega e reverencial, ao misterioso mas Todo-Poderoso ‘império do mercado’. Aliás, os ‘mercados’ (dito no plural, não sei se soa mais democrático, se actua como ameaça, em jeito de invocação dos ‘demónios’...) assumem o papel de uma verdadeira religião, a única realmente eficaz, com capacidade para vergar os transviados e fazer ajoelhar os menos devotos. A fé nos mercados é tanta que eles acreditam que o Espírito Santo mercantil – corporizado na ideologia do consumismo – acabará por ‘iluminar’ os mais resistentes, amalgamando gostos e condutas, formatando consciências, revelando-lhes todo o esplendor desta ‘sociedade de consumo’ – mas sonegando-lhes, na medida do possível, o lado negro do desperdício, do esgotamento de recursos, das profundas assimetrias sociais...!

É por isso que, neste contexto, qualquer proposta de alternativa ao ‘império do mercado’ soa a verdadeira heresia. Enquanto nos mantivermos no domínio do sagrado e do dogma, vai ser difícil dar a volta à situação! Para mal de todos, incluindo muitos dos seus mais fervorosos crentes!

Quando – e como – conseguiremos libertar-nos de todos os nossos ‘demónios’?

(...)

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