segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Liturgia orçamental: Notas à margem do OE11 – II

Um Deus Supremo: o paradigma do crescimento contínuo

Um dos aspectos que maior consenso social reúne é o da necessidade de um crescimento económico sustentado, requisito básico para a melhoria das condições de vida (as metas e a forma para o alcançar é que estabelecem as diferenças). Sem esta aparente unanimidade, porventura a base de todo o progresso, colocar-se-ia em risco a manutenção do nosso actual nível de conforto, em especial o conjunto de comodidades que foram sendo geradas e desenvolvidas ao longo da história breve do capitalismo.

Importa, contudo, desfazer desde logo um equívoco. Crescimento económico sustentado não é, como se sabe, a mesma coisa que desenvolvimento sustentado – pode haver crescimento sem que isso se traduza em desenvolvimento, tudo depende da forma como é obtido e utilizado esse crescimento – se bem que ambos sejam usados frequentemente de forma indistinta. Tal confusão apenas aproveita à religião do ‘império do mercado’, pois todo o poder deste é baseado no paradigma do crescimento contínuo, deus supremo a que tudo se subordina, bem patente na ideologia do produtivismo, que impõe produzir sem questionar. Não se ignora que, num mundo em que cerca de 80% da população sofre ainda, por vezes de forma brutal, carências materiais enormes, torna-se difícil explicar que desenvolvimento pode não implicar crescimento (ou até mesmo exigir decrescimento), mas esse é o papel que deve caber à política, enquanto forma superior de organização e direcção social (e a que é suposto subordinar-se a economia), tanto para as opções económicas a tomar (da produção à repartição), como na própria pedagogia a fazer sobre as escolhas adoptadas.

Mesmo a presente (permanente?) discussão em torno do déficit público e da necessidade em o reduzir para os cabalísticos ‘3% europeus’(!) é feita, invariavelmente, tendo como pano de fundo o primado do crescimento económico, referência obrigatória do actual modelo de desenvolvimento (ocidental primeiro, global por fim) e ao qual são atribuídos, definitivamente, insondáveis poderes mágicos servidos por uma alquimia de saberes esotéricos, mas de que depende a vida das pessoas. Da sobrevivência ao conforto, da ocupação ao lazer, até da guerra e da paz, tudo reporta ao nível de crescimento alcançado num determinado momento, tudo remete para esse incontestado modelo baseado na expansão económica contínua – cada vez mais contrariada por esse facto comezinho e óbvio de que os recursos em que assenta não são inesgotáveis...

O pensamento político, que era suposto reflectir sobre múltiplas alternativas, vive aprisionado no dilema do crescimento que apenas conhece as opções por ele mesmo ditadas: crescer, estagnar, reduzir. A ele se subordinam, como é óbvio, todas as decisões e acção políticas, tudo, afinal, gira em torno deste tema essencial, analisado não do ponto de vista da melhoria das condições de vida das pessoas, mas da criação de riqueza, com apropriação pré-definida pelo próprio sistema (a discussão em torno da sua repartição assume sempre papel negligenciável, mesmo sabendo-se não ser este um tema inócuo até do ponto de vista estrito da produção para o mercado).

Aliás, o mínimo reparo ou a mais leve crítica a este estado de coisas, ou qualquer tentativa de se apresentar uma alternativa real, é tido como devaneio irrealista e os seus autores apodados, conforme os casos e os contextos, ora de perigosos subversivos, ora de lunáticos idealistas, sempre como marginais ao essencial dos termos pré-fixados para o debate. As alternativas apresentadas só têm hipótese de serem aceites se respeitarem os limites impostos pelo sistema, o que implica ser apenas possível discutir entre variações de mais ou menos crescimento, entre ritmos mais rápidos ou mais lentos, nunca pôr em causa os mecanismos sociais que o (re)produzem.

Quanto tempo levará ainda a perceber ser impossível manter os ritmos de crescimento impostos pelo dito mercado eficiente? O que é que terá de acontecer para que as pessoas sintam – tal como começam agora a sentir os efeitos perversos do mercado – a necessidade de mudar o seu paradigma de vida, ajustando-o à realidade de um mundo de recursos limitados?

(...)

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