segunda-feira, 26 de julho de 2010

Tempos inquietantes - II

A ideologia do relativismo

O enquadramento ideológico que produz a proposta do PSD de revisão constitucional, origina e explica, igualmente, outras manifestações perturbadoras e bem sintomáticas do estado actual do debate das ideias, dominado mais pelo relativismo ético (a base do pragmatismo), que pelo individualismo liberal (não obstante o papel deste no discurso mediático). Porque é da conjugação destes dois elementos – relativismo/pragmatismo e liberalismo – que se constrói o ambiente ideológico propício ao domínio absoluto do mercado: a ausência de qualquer ideologia ou, o que dá no mesmo, o liberalismo reduzido à sua componente económica – o clássico ‘laissez-faire’.

É sabido que em tempos de crise florescem as mais diversas tendências, desvios e confusões. O desespero impede o discernimento e, nestas circunstâncias, facilmente o obscurantismo substitui o realismo, afinal é possível até encontrar a solução para a crise nas causas que a determinaram!!! Difícil é, por vezes, distinguir em que campo elas se situam ou a que grupo elas pertencem, as tradicionais referências de esquerda e direita manifestam-se insuficientes ou mesmo inadequadas ao seu correcto enquadramento. Destrinçar as falsas críticas – cujo objectivo é sobretudo o de camuflar os verdadeiros propósitos dos seus fautores – das que relevam da reflexão sobre a experiência e a vida; distinguir os consensos impostos – como é o caso do ‘mercado livre’ – dos que buscam na diversidade soluções alternativas, não se afigura tarefa simples.

A par da atenção redobrada que se exige nesta permanente demarcação entre o cálculo político (ou ideológico) e os factos concretos, impõe-se a denúncia das situações mais ofensivas da realidade (presente e histórica). Tanto nos ‘media’ tradicionais como nos diferentes locais da internet, amiúde deparamos com casos inquietantes. Onde se detectam velhos fantasmas, à mistura com novas ameaças. Das mais perigosas incursões – porque implicam a quebra de valores universais – às pouco mais que inúteis ou de efeitos estéreis – porque desfasadas da realidade. Longe de ajudarem a construir alternativas, contribuem para o adensamento da confusão das ideias, em benefício exclusivo da ‘ideologia do mercado’. Como é o caso dos dois exemplos seguintes.

De forma recorrente desponta a tese de que ‘o Holocausto nunca existiu’, com base na discussão de que os 6 milhões de judeus que se diz terem sido mortos pelos nazis são manifestamente exagerados. Da discussão do número parte-se para a negação do facto. Ora o Holocausto não se define pela quantidade de mortos que provocou, mas pela natureza do programa posto em marcha com vista ao extermínio – ao genocídio – de um povo, no caso o judeu, idêntico a outros, é certo, que ocorreram ao longo do séc. XX, ainda que sem idêntico mediatismo. O que os judeus do Estado de Israel depois fizeram com o capital de apoio ganho junto da opinião pública pelo então ocorrido, isso já é outra história que de modo algum justifica a tese do ‘negacionismo’.

O outro exemplo é mais complexo porque mais obscuro nos seus propósitos. Reporta-se a uma cada vez mais insistente crítica ao sistema bancário, tido (e bem) como o centro de decisão que conduziu à Crise, qualificado, enfim, de intermediário financeiro parasita – o que já representa um juízo limitado sobre a natureza tanto da função bancária como do próprio mercado. Se, por um lado, a Banca exerce o papel charneira nas relações entre todos os agentes que operam no mercado (determinante, pois, no processo de valorização da mercadoria), contudo é ao modelo social que organiza essas relações e ao seu paradigma de desenvolvimento que importa assacar as maiores responsabilidades: o modelo baseado no mercado e o paradigma do crescimento económico contínuo.

Apontar a actividade de intermediação bancária como a única (ou mesmo a principal) causa da Crise actual (e, note-se, sem qualquer referência à desregulação financeira...), torna-se um exercício inútil, porque desfasado da realidade, mas perigoso, ao desfocar a atenção do essencial: a urgência na mudança do paradigma de desenvolvimento que impõe o crescimento contínuo, suporte do mercado. É, de algum modo, descortinar um bode expiatório destinado à expiação para sossego dos espíritos dependentes de liturgias laicas. É, enfim, culpar o instrumento, poupando o artista que o toca. Como há 70 anos, num gesto repetido ao longo de séculos, os nazis fizeram com os judeus para justificarem, perante a sociedade alemã da época, as suas próprias insuficiências. Com os resultados que se conhecem.

No fim de contas, a quem interessa uma ideologia assente na mistificação dos factos? Quem mais aproveita com a aparente (?) distorção da realidade?
(...)

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