quarta-feira, 21 de julho de 2010

Tempos inquietantes - I

A política das aparências

Já aqui me referi a ‘Tempos Interessantes’, um ainda recente livro do talvez maior historiador vivo, Eric Hobsbawm, com o subtítulo de ‘Uma vida no Século XX’, situando a época a que se referem estas suas notáveis memórias. De um tempo em que sobravam referências para identificar as lutas e os ideais que as motivavam, em que as ideologias enquadravam a acção dos homens – e o seu empenho não era movido apenas pelo cálculo dos interesses imediatos.

A propósito de alguns episódios e indícios equívocos, senão mesmo perigosos, tomo então de empréstimo, adaptada, a fórmula utilizada no título de Hobsbawm. Para com ela tentar enquadrar e melhor compreender certos acontecimentos, aparentemente dispersos e sem ligação, no fundo, porém, comungando da mesma lógica que torna tão inquietantes estes tempos: a apregoada necessidade de aprofundamento da lógica do mercado, em plena crise... provocada pelo mercado – contra tudo, pois, o que racionalmente seria expectável.

A começar no episódio que ultimamente mais tem concentrado as atenções e os comentários políticos: a proposta social-democrata de revisão constitucional. Já se percebeu que a actual direcção do PSD, para além de um reforçado e muito generoso estado de graça que lhe foi proporcionado pelos condicionalismos existentes – crise global, governação PS, anteriores direcções do PSD,... – actua em dois planos: calculisticamente vai aguardando que o poder lhe caia nas mãos a partir do mero desgaste das diversas frentes, em especial a da desastrosa frente política interna; enquanto isso, vai procedendo a experimentalismos de vária ordem a ver como reagem os destinatários, políticos ou simples cidadãos.

A polémica em torno da revisão constitucional, numa altura em que, perante as óbvias prioridades ditadas pela crise, nada apontaria para a urgência de tal discussão, mais parece enquadrar-se em estratégias de distracção política para desvio de atenções de outros cenários mais comprometedores (viabilização dos PECs, discussão do próximo OE,...), talhada a jeito dos propósitos liberais que animam a actual liderança PSD. Por isso avança com uma espúria proposta de aumento dos poderes presidenciais – contra a história do seu próprio partido, lembrou Santana Lopes! – mas com os olhos postos no mais apetecido pacote social: privatização de serviços públicos e liberalização dos despedimentos!

Pode bem acontecer que essa seja a moeda de troca numa eventual futura negociação sobre as matérias a rever e que, chegado o momento de se ceder em alguma coisa, isso aconteça no acessório para que o essencial passe – e o essencial é, com toda a certeza, na óptica liberal, a alteração do actual conceito constitucional de direitos sociais (saúde, educação, trabalho,...) – pretendendo substituir direitos por regalias.

A opinião expressa por Ângelo Correia (criador, tutor, mentor,... do actual líder do PSD), em artigo assinado no CM de 20 de Jul., desfaz quaisquer dúvidas a este respeito, ao centrar toda a sua argumentação sobre revisão constitucional nas alterações em torno da componente social, afirmando, por exemplo, que ‘uma constituição democrática (...) reconhece a impossibilidade de manutenção de regras de gratuitidade’, que considera ‘uma quimera’. Sintomaticamente, nem por uma vez se refere à componente política da proposta sobre o tão propalado reforço dos poderes presidenciais!

A mera formulação de tal proposta é, só por si, inquietante e teve como efeito imediato uma generalizada rejeição nos mais diversos sectores da sociedade – incluindo no seio do próprio PSD. Mas também já se percebeu que esta direcção não joga apenas no imediato e as suas acções visam efeitos de mais longo prazo. É certamente calculada uma eventual perda de intenções de voto momentânea, os seus dirigentes afanam-se em semear agora, porque esperam colher no futuro.

Resta então saber até onde ‘este’ PS vai resistir e conter a dinâmica liberalizante que a suporta – para além da que ele próprio, a despeito das bravatas mediáticas, na prática há muito pôs em marcha!
(...)

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