Da tragédia lusa à farsa mundial
Estes factos recentes – outros certamente se seguirão... – que parecem enquadrar um bem afinado coro de cassandras, não surgem agora por acaso. Seria de esperar, no entanto, que diagnósticos tão próximos e que prognosticam eminentes catástrofes, resultassem na imediata explicitação de medidas concretas para reverter a 'explosiva situação' em que o país se encontra. Mas para além de partilharem todos a opinião comum de que ‘as grandes obras públicas’ devem ser travadas – a única proposta concreta que ousam adiantar – o que sobra deste conjunto de posições tidas por cívicas, esgota-se no propósito obsessivo da contenção do déficit público. Muito além do que aconselharia um saudável equilíbrio das contas públicas.
Desde logo se diga que – e sem recurso a qualquer teoria da cabala, ela não é precisa aqui para nada, pois o coro já antes se manifestava afinado sem precisar de ensaios – o que está em causa, é retornar à mesma linha de rumo abalada e, por momentos, parecendo interrompida pela crise. Ledo engano, ‘abalada’ e ‘interrompida’ apenas na aparência, porque passado o susto, refeitos os prejuízos pelo ‘monstro’ Estado – por conta de quem se exorcizam todos os demónios que impedem a doce felicidade do homem (garantida pela fidelidade à já atrás referida ortodoxia neoliberal), mas a quem logo se recorre em caso de fera aflição – tudo então parece retomar o modo ‘normal’ da vida!
À margem destes propósitos e movimentações, importa então acentuar, também aqui, o falso dilema em que se pretende aprisionar a iniciativa do Estado, impedindo-o de intervir na economia, sob pretexto de uma elevada dívida pública (bem desmontado nos ‘blogs’ da especialidade: Ladrões de Bicicletas, O valor das Ideias,...). Pois esse é seguramente o modo mais rápido de se cair na depressão económica e, na sequência, na ‘instabilidade social’ (elevado desemprego, contracção forte da procura interna, degradação das condições de vida da população,...), insustentável a longo prazo, como parece ser o tempo esperado para a situação de emergência social e económica, com que se passou a designar o tempo desta crise.
O verdadeiro dilema, entretanto, não passa ‘apenas’ e sobretudo pela maior ou menor capacidade financeira do Estado, mas por opções políticas condicionadas por esta organização social – de que o Estado é garante – vitais para o actual modo de vida e para o futuro das sociedades. Que, na esfera económica, passam pelo urgente questionamento do paradigma do crescimento contínuo, impondo-se uma completa inversão das políticas de gestão dos recursos: humanos (política laboral apostada em garantir o acesso ao trabalho); materiais (política produtiva visando uma alocação estratégica dos investimentos, da produção básica à especialização produtiva, o acesso generalizado à tecnologia,...); da conservação (política ambiental voltada para a sustentabilidade); da distribuição (política retributiva, assegurando uma melhor repartição da riqueza). Sem esquecer a origem imediata da crise na desenfreada desregulamentação com que se pretendeu ‘eliminar’ o Estado da vida económica.
Muitos, pois, com mais competência na matéria, o vêm afirmando: colocar o investimento em alternativa ao déficit não parece constituir opção política válida, desde logo atendendo às condições específicas do momento presente em que se impõe acudir a toda a envolvente da crise actual – porque importa actuar antes de mais na busca de soluções para atenuar as suas consequências (já que, quanto às causas que a determinaram e à forma de lhes responder...). Mas tão pouco constitui, sequer, alternativa real, pois na verdade o que se tem verificado é que a obsessão do déficit ao longo de toda a década passada serviu sobretudo de argumento para:
- impedir uma política de investimentos públicos – indispensável para reduzir um pouco a fragilidade da posição económica do país e das suas estruturas, da baixa qualificação (sobretudo em gestão e organização, principal pecha do atávico déficit de produtividade), à dependência energética (principal causa do estrutural desequilíbrio comercial);
- ‘emagrecer’ a política social – reduzindo os já muito atrofiados benefícios básicos concedidos, com isso contribuindo para aumentar as desigualdades e as gritantes disparidades do rendimento;
- impor uma política fiscal especialmente adaptada para servir as grandes empresas – sob pretexto de pretender evitar a fuga de capitais, quando não mesmo de beneficiar as PME’s.
Falar agora do déficit para continuar a impedir-se o investimento e a condicionarem-se as restantes políticas, já não é apenas uma tragédia, é mais a continuação da farsa. A nível global!
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