sábado, 9 de janeiro de 2010

Ano Novo, velhas utopias (1)

Ideais universalistas contra os fundamentalismos exclusivistas

Nesta altura do ano temos por salutar hábito transmitir uns aos outros o desejo de uma vida melhor, por vezes mesmo sabendo-o de difícil ou mesmo impossível realização. Fazemo-lo, em regra, por convicção (ainda que por conta da tradição), esperando com esse gesto fortalecer a ‘boa onda’ gerada pela longa cadeia de votos formulados em torno de desígnios tão sublimes quanto difíceis de prosseguir (no seu conjunto e sem discriminações), como o são a paz, a saúde, a amizade, a solidariedade, a prosperidade,... Desígnios que afinal constituem a mais velha e universal utopia da Humanidade, a que mais sensibiliza e tem mobilizado o Homem, qualquer que seja o sítio, o momento ou as circunstâncias. Que atravessa religiões, ideologias, simples movimentos filantrópicos. Na busca, em suma, da felicidade de todos. O generalizado acordo na sua aceitação, porém, não consegue evitar complacentes sorrisos caso alguém se proponha a sua realização global. Afinal utopia é isso mesmo, representa um ideal de sociedade, um modelo alternativo às sofridas condições da existência, mas dificilmente se adapta à realidade concreta.

Esta é a utopia que agrega sem discriminar nem excluir. Que não atiça proselitismos porque, em lugar de se constituir contra alguém, faz da vida a sua única religião. Que pretende acrescentar, sem que isso implique reduzir nada a ninguém. Ao contrário de outras que, eivadas de um espírito sectário de cariz religioso ou ideológico, apostam no interesse egoísta, na exclusão do ‘outro’ e na discriminação da diferença.

O fundamentalista islâmico faz o que faz, incluindo actos terroristas, porque acredita poder vir a realizar, através desses actos, a ‘sua’ utopia, a de rumar aos céus onde o esperam largas dezenas de virgens e uma eternidade de... felicidade! O fundamentalista liberal alimenta, também ele, uma utopia, o sonho da ‘sua’ imensa liberdade individual, cujos limites seriam ditados apenas pela liberdade dos outros. Felicidade pessoal, pois, mas à custa do sacrifício de muitos!

Mas enquanto a realização da utopia islâmica é transposta para ‘uma outra vida’, a celestial, a da utopia individualista pretende ser realizável já nesta, na terrena. E isso porque a base de partida é essencialmente diferente: a utopia individualista impregna o capitalismo dominante, a utopia islâmica domina povos humilhados e explorados. Se alguma vez esta situação se invertesse, talvez pudéssemos então assistir à adaptação terrena da teoria religiosa das virgens e, em contrapartida, ao ressurgimento do abominável terrorismo por entre as incensadas hostes liberais (já nem seria facto inédito!).

A formulação da utopia individualista é, por si só, uma impossibilidade prática, já que as zonas de fronteira entre as liberdades de cada um são tão sensíveis que o potencial de conflitos e a sua resolução implica a existência prévia de um critério ou a intervenção de um terceiro com capacidade e aceitação nas partes para, de forma isenta, se poder regulamentar e dirimir conflitos. Daí a visceral aversão dos ‘liberais’ ao Estado e às suas instituições, dado ser ele que, por regra, detém esse poder arbitral.

Entre o exclusivismo discriminatório proposto pelas utopias fundamentalistas (de cariz religioso, ideológico ou outro) e o universalismo dos ideais que, pelo menos por esta altura, todos os anos revisitamos, a escolha não parece difícil de fazer. Pelo menos para os ‘homens de boa vontade’. E mesmo que seja apodada de utópica!

(...)

Sem comentários: