Retomo ainda, das ‘Europeias’, essa interrogação, já tantas vezes formulada e com resposta por tantos também tentada, se bem que, parece-me, sem satisfazer plenamente a dúvida nela contida: a de saber, afinal, por que razão se verificou, na generalidade dos países da UE, uma acentuada guinada política à direita por parte do eleitorado, quando se tem por assente (um mínimo de objectividade a isso conduz) que a origem da crise esteve na avassaladora tendência desreguladora imposta pela incontrolável deriva neoliberal dos últimos 30 anos!
À falta de melhor explicação fala-se então na incapacidade dos partidos de esquerda (em geral) definirem e aplicarem uma verdadeira política alternativa a esse modelo hegemónico liberal, o que, perante a amálgama indiferenciada de propostas, teria conduzido os eleitores a optarem pelo original, mais autêntico e garantido, que uma qualquer cópia. Eu próprio tentei a ‘boutade’ em anterior comentário, adiantando, no entanto, que tal se fica a dever desde logo à variável distribuição dos efeitos punitivos da crise (acima de todos, os que com ela perderam ou sentem fragilizado o emprego), mas certamente também à inexistência de um claro e consistente modelo alternativo.
Adiantei mesmo (e já não foi a primeira vez, ainda que se trate de uma velha polémica que, lamentavelmente, não tem passado disso mesmo!) que, partindo, antes de mais, da crítica (e consequente abandono) do actual paradigma de desenvolvimento baseado no crescimento contínuo (que todos sabem condenado a prazo – pelo inevitável esgotamento dos recursos – mas que todos fazem por ignorar), isso implica a sua transformação num outro que permita a estruturação de uma sociedade (1) sustentável, (2) de equilíbrio regulado, (3) de valores (seriedade, sobriedade e solidariedade – para além, claro, do clássico tríptico herdado da Revolução Francesa).
Mas, ainda assim, permanece a insatisfação com este tipo de leituras sobre o ocorrido nessas eleições. Porque estas respostas, de fácil aceitação racional e já com alargado consenso, têm-se demonstrado impossíveis de concretizar, não obstante a realidade objectiva o exigir cada vez com maior premência, sob pena de as sérias ameaças que hoje afectam a vida do planeta, se transformarem em danos irreversíveis. Perceber o que tem impedido a realização de um tal programa, exige, a meu ver, a prévia desmontagem da promiscuidade ideológica em que a direita conseguiu enlear (e manietar) um certo pensamento da esquerda, porventura traumatizada pelo fracassado modelo socialista soviético, por receio de com ele ser confundida. No centro deste sequestro ideológico, o dogma que estabelece a indissociável parceria entre democracia e mercado, como os dois pólos ou bases que garantem uma sociedade livre e desenvolvida: o mercado representaria na economia o papel que a democracia desempenha na política.
Entretanto e aparentemente sem qualquer relação com este assunto, logo no início deste mês de Julho, foram divulgados os resultados do estudo, promovido pela SEDES, sobre «A Qualidade da Democracia em Portugal: A Perspectiva dos Cidadãos». E talvez o aspecto mais inquietante a destacar nele seja mesmo o de que a maioria dos inquiridos (51%) não está satisfeita com ‘esta’ democracia. O inquérito centra-se mais nas questões da cidadania, os assuntos da economia parecem dele arredados. No entanto, a conclusão que mais salta à vista é a percepção do tratamento diferenciado que a Justiça proporciona... de acordo com o poder económico (82% considera que ricos e pobres são por ela tratados de forma desigual) ou o com o estatuto social (79% refere que trata de forma diferente políticos e cidadãos comuns).
Conclusão que reforça a percepção já generalizada na opinião pública: o que falta cumprir à democracia é a sempre prometida e nunca conseguida democracia económica – e a correlativa eliminação de privilégios, arrimo de todas as formas de discriminação e corrupção!
É esta impossibilidade prática de se consumar a democracia económica pela via do mercado (travestido de ‘economia social de mercado’), que confronta a esquerda e a deve levar a questionar-se, sob pena de ficar em risco a própria democracia política – a crescente insatisfação revelada no inquérito! – no sentido de identificar o que deve mudar para se constituir como verdadeira alternativa. Assumindo, desde logo, que a percepção generalizada da inutilidade das opções políticas postas a sufrágio e, consequentemente, a profunda ‘descredibilização da política’, tem a sua origem no implantado rotativismo partidário, centrado na mera gestão do sistema.
O drama é que, nas condições objectivas de funcionamento das actuais sociedades de consumo, é praticamente impossível contrariar, ou tão só desafiar, esse impulso vital que organiza toda a nossa vida social, que determina e explica o extremo consumismo que a caracteriza, que se acoberta na necessidade de... criação de valor. É, pois, sem pudor, que a própria terminologia escancara o propósito último do sistema: o objectivo instrumental básico das sociedades organizadas, a criação de riqueza, é substituída pela criação de valor – mesmo que esta criação de valor em nada venha a contribuir para a criação de riqueza!
Por alguma razão a origem (e explicação) da crise é, também, o principal obstáculo à sua resolução.
Combates pela história
Há 2 horas
1 comentário:
Aqui, numa reflexão de Manuel Alegre, pode ler-se um "mea culpa" sobre as "culpas" de alguma esquerda na vitória da direita.
Enviar um comentário