Ao longo das últimas décadas tem
vindo a observar-se uma alteração radical na organização social, cada vez mais
perceptível na sua base ideológica neoliberal, cujas consequências são ainda difíceis de
avaliar na globalidade. Por trás do reforço, até ao paroxismo, das principais
tendências gerais que melhor identificam e caracterizam este sistema capitalista – concentração da riqueza,
com o consequente aumento das desigualdades sociais; apropriação
privada dos incrementos da produtividade social, com a redução do valor do
trabalho e o disparar do desemprego – detecta-se o exacerbar do individualismo,
com tradução social no princípio do ‘cada um por si’, prolongado na máxima do
‘salve-se quem puder’.
O resultado mais visível deste
projecto ideológico expressa-se na desaceleração do crescimento económico
(em queda desde os anos 70), pelo efeito em cadeia da destruição de empregos
provocada pela automação, baixa de salários e diminuição da procura (que o
aumento das desigualdades tende a acentuar). Prolonga-se na crescente ameaça
à segurança dos indivíduos, hoje representada pela estabilidade no
emprego (tal como antes o fora a propriedade, tornada um direito pela Revolução
Francesa, nos primórdios do sistema). Ao mesmo tempo as empresas ganham cada
vez mais autonomia face ao espaço nacional, sobre as quais os governos
já não têm controle. E a divergência estabelece-se como norma da UE –
contrariando o seu propósito estatutário da convergência das economias!
Para onde todos estes aspectos convergem é na
criação de um espaço social radicalmente diferente do nosso (ainda) actual modo
de vida. Não obstante tudo ser por enquanto muito impreciso, é possível
sinalizar algumas das tendências mais impressivas e essenciais para a vida das
pessoas que melhor individualizam este domínio da ideologia neoliberal:
1.
Alternância sem
alternativas – a lenta agonia da democracia
Desde que, nos idos 80, o TINA de
Thatcher iniciou o seu percurso político, a democracia tem vindo a encolher,
corre mesmo o risco de morrer à míngua (por falta de conteúdo). Não havendo
lugar a alternativas, o espaço democrático reduz-se a pouco mais que o mero
formalismo do voto periódico e a escassos simulacros de liberdade. Em seu lugar
têm vindo a impor-se, com o peso de explicações económicas pseudo-científicas,
soluções ditas técnicas – supostamente neutras e isentas face às políticas, por
natureza ‘contaminadas’ por opções de facção. Registe-se, neste processo de
desvalorização da política, o papel cúmplice da social-democracia, o que determinou
já a sua própria inutilidade enquanto alternativa ideológica ao neoliberalismo,
conduzindo ao seu progressivo (e porventura definitivo) definhamento.
2.
Too big to fail – a
crescente autonomia das empresas confronta a crescente dependência dos Estados
Esta crise consumou o domínio
absoluto do poder financeiro global. Prova disso a demonstração real e cabal do
teorizado ‘risco moral’. Perante a ameaça de falência de instituições tidas
como demasiado grandes para não comprometerem a estabilidade do sistema, o poder
político viu-se coagido a desencadear acções de apoio ao sistema financeiro,
suportado pelos contribuintes através dos famigerados ‘planos de austeridade’.
Mas enquanto os bancos foram considerados grandes demais para soçobrar, por
receio de contágio sobre as restantes estruturas sociais, os Estados são
equiparados a meras empresas descartáveis e empurrados para a situação de
bancarrota, como forma de pressão para aceitação de todas as imposições e
extorsões.
3. Uma sociedade de ‘gangs’ – a organização social baseada
no princípio do ‘cada um por si’
À medida que se acumulam os
indícios de cada um estar por sua conta e risco, aumenta assustadoramente a
sensação de insegurança, o ‘outro’ – qualquer outro – passa a constituir
um potencial inimigo e é encarado com desconfiança. Este ambiente social
propicia a difusão de redes de contactos e de influências, favorece o espírito
corporativo e os grupos de interesses. Com o individualismo e o isolamento,
cresce a guetização da sociedade, proliferam os ‘gangs’, os únicos que
transmitem aos que os integram alguma segurança. ‘Gangs’ sociais, políticos,
económicos (como o 'pioneiro' BPN),... A regressão social instala-se, a cultura retorna à lei da selva!
4.
A infantilização das
opiniões públicas – uma narrativa sobre
a ‘crise’ para consumo de imbecis
Contra todas as evidências
(incluindo concludentes relatos de insuspeitos protagonistas: ver Público
deste domingo, 11Maio14), o discurso oficial continua a insistir na estratégia comunicacional de uma
explicação infantilizada da crise, repartida por duas partes: na primeira, ‘o
mau da fita’ – o Governo anterior – aparece como único responsável
pela crise que levou à troika; na segunda, ‘o bom da história’
– o Governo actual – ergue-se como grande arquitecto da (imposta) saída
limpa! A crise financeira de 2008 nunca existiu (assim o afirma, aliás,
um dos gurus desta escola, o nobelizado Fama, em nome da sacrossanta eficiência
dos mercados!), Grécia, Itália, Espanha, França, a própria Alemanha,... nunca
tiveram problemas nos seus eficientes sistemas bancários. Tão eficientes que souberam
impor, através de prestáveis serventuários políticos, a mais colossal extorsão
de recursos do trabalho para a... Banca dos países no centro do poder.
Assim como também nada teve a ver com o desfecho (provisório) desta história, a
alteração do papel do BCE, o excesso de liquidez nos mercados de capitais, o risco de deflação na UE, a
evolução (também positiva) das taxas nos restantes países - tudo acontece por mero
acaso!
Sem se pretender exaustiva (longe até de o ser), esta lista, contudo, é
já suficientemente elucidativa das transformações sociais em curso por via do
actual domínio neoliberal. Não é seguramente este o modelo de sociedade a que a
maioria aspira ou idealizou. Mas é esta a sociedade que parece estar a nascer,
a pretexto da resolução da crise financeira. Quando esta rebentou, alimentou-se
a ideia de algo poder vir a mudar no rumo regressivo que já então era claro. A
crise das dívidas que lhe sucedeu repôs o rumo anterior, a ritmo ainda mais
intenso. Com bem graves consequências: a pressão sobre os recursos que resulta
do exacerbado espírito competitivo instituído como regra universal e
absoluta, terá como inevitável desfecho, a breve prazo, o seu esgotamento – às
agora dívidas insustentáveis, irá suceder um planeta
insustentável ? – e outras crises se perfilam já no horizonte. Com
saídas imprevistas nada tranquilizadoras.
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