...e a 'utilidade' da crise na consciência política
Por mais que o tema tenha deliberadamente sido ‘apagado’
da campanha eleitoral, a grande linha divisória nestas eleições europeias passa
pelo Tratado Orçamental/TO (de inspiração germânica): ou se é pró ou se
é contra a manutenção da austeridade nele instituída! Da austeridade
‘tout court’, porque embora não sendo a mesma coisa sofrer os efeitos de uma ‘austeridade
leve’ ao jeito do que pretende o PS, ou os de uma ‘austeridade dura’
como a aplicada pelo actual Governo de direita (ainda que com objectivos
políticos mais amplos dos que os proclamados), o certo é que, no final, o
resultado não será muito diferente: a destruição deste anémico e ainda muito
embrionário Estado Social (na comparação com outros mais evoluídos),
considerado insustentável e por isso objecto de inevitáveis reformas.
Como as que se encontram em curso, desenvolvidas pela coligação no poder,
paladina e cultora da ‘terapia do choque’ provocada pela política desta
‘austeridade dura’.
Contudo, essas pretensas reformas
que o actual Governo neoliberal diz estar a empreender, afinal reduzem-se à
destruição, mais ou menos profunda, mais ou menos acelerada (assim as condições
sociais o permitam), do Estado Social erguido no pós 25 Abril, em
especial nos domínios da educação, saúde e segurança social, ao desmantelamento
das leis laborais e outras reformas sociais de reconhecido impacto positivo na vida das pessoas. Em bom rigor, pois, ao que se assiste hoje é a um monumental movimento político de contra-reforma, de cariz tão
religioso e fanatizado como o empreendido pela Igreja de Roma quando Lutero e
outros reformistas tentaram a inglória renovação do cristianismo do
séc. XVI. O capitalismo liberal (na sua actual versão neo),
depois do susto da crise financeira de 2008, soube recuperar a iniciativa
política e reconstituir a imensa massa de recursos volatilizada pelo
rebentamento da bolha especulativa, à custa da mais gigantesca e ignominiosa
transferência histórica de valor do trabalho para o capital.
Depois de punirem as pessoas cortando salários e pensões,
de proibirem os sonhos dos jovens obrigando centenas de milhares a emigrar, de
violarem todos os contratos pessoais em nome do respeito (ou antes,
‘respeitinho’!) pelos contraídos com o capital, de subjugarem a política (a
vida das pessoas) à completa dependência de esconsos mercados (formalizada com
a aprovação do TO), de, no final, fragilizarem ainda mais um país já frágil e
empobrecerem ainda mais as suas já pobres gentes; depois de utilizarem a
mentira como táctica, de infantilizarem os destinatários do discurso político
como estratégia de comunicação, de recorrerem, enfim, a todos os expedientes
para instalarem o seu 'Admirável Mundo Novo’ (!!!); em suma, depois de
desregularem, privatizarem e arruinarem o Estado Social (a mesmíssima receita
dos ‘Chicago boys’ aplicada desde o Chile de Pinochet), a estratégia eleitoral
desta direita ultraliberal (suportada no essencial, é bom acrescentar, por
‘este’ PS – e o essencial, reafirme-se, está no TO) centra-se agora em
demonstrar que esse quimérico objectivo afinal é alcançável e que tudo isso era
indispensável para se meter o país (e as pessoas desse país) na ‘ordem’ –
depois da ‘desordem’ que foi o
desgoverno do ‘alternante’ PS !
Certo é que a tese do ‘não há alternativa’ à
política da austeridade encontra uma boa dose do seu sustento na posição dúbia
do PS. Percebe-se a posição da direita no poder: submissão total aos credores
externos mesmo que isso implique a destruição do País. Percebe-se a posição dos
partidos mais à esquerda (PCP e BE, e outros sem expressão parlamentar):
reestruturação da dívida (implicando prazos, taxas e montantes), ainda que isso
possa vir a implicar retaliação internacional e uma quase provável saída do
Euro. Difícil é entender a posição deste PS, para além da crítica emparceirada
com a esquerda de uns, do quase alinhamento com a posição do Governo de direita
por parte de outros, do centrismo um pouco ao sabor das conveniências da sua
actual liderança.
Esta alternância sem alternativas é a principal responsável pelo
crescente descrédito da política, bem expresso na cada vez mais elevada
abstenção. É manifesto o incómodo desta situação para o ‘status quo’ do
sistema, na medida em que tal evolução traduza o protesto de uma maior consciência das pessoas nas deficiências do actual modelo democrático e as induza a procurar
alternativas políticas reais – para além das formais alternâncias partidárias –
dentro ou fora do sistema. Com os partidos da alternância (o denominado arco
da governação) instalados no poder (‘à vez’, mas preparam-se para o fazer
‘em conjunto’, no bloco central), com o PC instalado/entrincheirado no seu inexpugnável
reduto partidário (à maneira dos indefectíveis gauleses, parecendo satisfeito se obtiver
3 dos 751 deputados em disputa!), uma política de esquerda deveria
concentrar-se, através de longo e persistente trabalho pedagógico, no
essencial: na recusa do TO e na defesa do Estado Social, o que implica assumir, com todas as consequências, a reestruturação
da dívida. No actual contexto europeu esta surge como a alternativa
inadiável à austeridade permanente – em oposição à sádica pantomina desta Contra-Reforma liberal sobre a vida das pessoas!
Sem comentários:
Enviar um comentário