domingo, 5 de dezembro de 2010

Violência das desigualdades, ‘fantasmas’ da burguesia

Um dos ensinamentos básicos da História, para quem estiver disposto a acatá-los, é que a realidade social é sempre mais complexa e dinâmica que os esquemas teóricos onde, por vezes, se tenta encerrá-la. A actual crise e a forma como ela tem sido tratada ao nível da decisão política e dos responsáveis económicos, vem proporcionando exemplos de sobra de como as melhores soluções práticas dificilmente se ajustam às fórmulas contidas nos bem elaborados compêndios universitários.

A economia clássica, como se sabe, teoriza(va) enfaticamente sobre as virtualidades criadoras dos ciclos recessivos: à destruição provocada pelas crises económicas (falências, desemprego,...), sucedia um novo ponto de equilíbrio, uma nova economia, mais dinâmica, mais produtiva, renovada. Isso até à grande crise de 29, que pôs o sistema à beira do colapso. Valeu-lhe, na emergência, um misto de realismo e de ousadia teórica, a acção política de Roosevelt e o pensamento de Keynes, o programa do New Deal e a ambição do Welfare State. Ao paradigma clássico do desenvolvimento natural do ciclo recessivo assente no ajustamento da oferta, Keynes contrapõe a necessidade de estímulos à procura, só possível através da intervenção externa do Estado. Soçobrou a teoria, mas salvou-se a economia e o sistema!

Durante perto de 50 anos prevaleceu o pragmatismo, mesmo quando, na aparência, isso implicava actuar contra a teoria. Até que, ignorando as cautelas impostas por aquela velha máxima, o proselitismo ultraliberal (com nomes e ramificações conhecidas, a sua origem remonta aos anos 30 – Colóquio Walter Lippman, em Paris – e fundação, em 1947, da Societé Mont-Pèlerin), que nunca havia desistido dos princípios teóricos clássicos, impõe os seus pontos de vista. A pouco e pouco foi-se consumando a ruptura do Pacto Social que emerge do pós-guerra – cuja base económica assentava nos princípios keynesianos de desenvolvimento. A inevitável desagregação social subsequente, potencia novas manifestações da violência inscrita nos genes de um sistema regulado pela competição (alimentadas, é certo, por múltiplos outros factores).

Desta acção resultou, em boa medida, a presente crise e a persistência de alguns dos principais impasses económicos e sociais. De entre todos e à cabeça, o grande dilema das sociedades actuais: onde e como ocupar de forma produtiva toda a população. No âmbito das correntes dominantes da economia, a única solução admissível, ainda que de efeitos temporários, passa por se retomarem as medidas de estímulo à procura, por via da intervenção do Estado, tal como propugna a teoria keynesiana para a saída do ciclo recessivo. Mas a resistência a esta perspectiva, por parte do actual poder neoliberal, torna cada vez maior a probabilidade de, no imediato, se aprofundar a catástrofe social e de os seus efeitos se protelarem indefinidamente.

Daí que, comece a equacionar-se e pareça já só fazer sentido uma solução de longo prazo, apenas possível com uma alteração radical da organização social, desde logo no que respeita à forma como o trabalho é encarado: de simples mercadoria em direito pessoal efectivo, tutelado pelo Estado, implicando, nomeadamente, a redução do tempo actual e a sua redistribuição, por forma a permitir-se o pleno emprego das capacidades humanas disponíveis e o acesso de todos, em condições de igualdade, às potencialidades presentes na sociedade. Qualquer outra alternativa não passará de paliativo temporário, destinada a fracassar e a, de forma recorrente, dar lugar a outra,... a mais outra,... Até ao colapso final?

Enquanto isso, não param de ser emitidos sinais inquietantes de um mundo em acelerada desagregação. O que se passa com as actuais guerras entre ‘gangs’ rivais – tenham eles a sofisticação das múltiplas máfias (russas, tríades chinesas ou cartéis da droga) ou o amadorismo ‘romântico’ dos simples ‘gangs’ de bairro – reflecte um pouco a tendência desagregadora para onde se orienta a competição fora do controle do Estado. Ou do espírito subjacente à decantada liberdade individual por trás da iniciativa e criatividade mercantis e dos negócios. O risco da violência descontrolada evoluir para uma situação de desagregação social próxima da anomia não é de todo ficcional...

Precisamente o medo de desagregação social (em resultado da aplicação das receitas liberais) - por potenciar a via revolucionária - renasce entre os mais lúcidos teóricos da burguesia. Remonta-se ao início do séc. XX, para onde somos remetidos pela comparação – exposta no último ‘Prós e Contras’ pelo liberal João Confraria – com o que se passa hoje a nível da desigualdade na distribuição do rendimento, porque ‘nalguns casos, adianta, a percentagem da riqueza que vai para o 1% mais rico da população é semelhante à de então’, ou seja, ao invés de diminuir, tem vindo a aumentar perigosamente! Por trás de uma postura teórica pretensamente asséptica, relembra que o actual nível de desigualdades é, como então, propício a ‘acontecerem coisas terríveis como a revolução russa e o que se lhe seguiu’. E avança explicando que ‘quando a desigualdade atinge níveis que as pessoas consideram insuportáveis ou indecentes, tendem a manifestar-se de forma pouco civilizada (!), embora com o apoio de aparelhos ideológicos mais ou menos estranhos (?). E é isso que temos de evitar’, conclui.

Afinal, a única preocupação por trás da prosápia condoída com que esta gente adorna os discursos sobre a desigualdade (e os seus efeitos) é mesmo e só, hoje e sempre, o ‘fantasma’ da revolução e o papão do comunismo!

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