Um dos ensinamentos básicos da História, para quem estiver disposto a acatá-los, é que a realidade social é sempre mais complexa e dinâmica que os esquemas teóricos onde, por vezes, se tenta encerrá-la. A actual crise e a forma como ela tem sido tratada ao nível da decisão política e dos responsáveis económicos, vem proporcionando exemplos de sobra de como as melhores soluções práticas dificilmente se ajustam às fórmulas contidas nos bem elaborados compêndios universitários.A economia clássica, como se sabe, teoriza(va) enfaticamente sobre as virtualidades criadoras dos ciclos recessivos: à destruição provocada pelas crises económicas (falências, desemprego,...), sucedia um novo ponto de equilíbrio, uma nova economia, mais dinâmica, mais produtiva, renovada. Isso até à grande crise de 29, que pôs o sistema à beira do colapso. Valeu-lhe, na emergência, um misto de realismo e de ousadia teórica, a acção política de Roosevelt e o pensamento de Keynes, o programa do New Deal e a ambição do Welfare State. Ao paradigma clássico do desenvolvimento natural do ciclo recessivo assente no ajustamento da oferta, Keynes contrapõe a necessidade de estímulos à procura, só possível através da intervenção externa do Estado. Soçobrou a teoria, mas salvou-se a economia e o sistema!
Durante perto de 50 anos prevaleceu o pragmatismo, mesmo quando, na aparência, isso implicava actuar contra a teoria. Até que, ignorando as cautelas impostas por aquela velha máxima, o proselitismo ultraliberal (com nomes e ramificações conhecidas, a sua origem remonta aos anos 30 – Colóquio Walter Lippman, em Paris – e fundação, em 1947, da Societé Mont-Pèlerin), que nunca havia desistido dos princípios teóricos clássicos, impõe os seus pontos de vista. A pouco e pouco foi-se consumando a ruptura do Pacto Social que emerge do pós-guerra – cuja base económica assentava nos princípios keynesianos de desenvolvimento. A inevitável desagregação social subsequente, potencia novas manifestações da violência inscrita nos genes de um sistema regulado pela competição (alimentadas, é certo, por múltiplos outros factores).
Desta acção resultou, em boa medida, a presente crise e a persistência de alguns dos principais impasses económicos e sociais. De entre todos e à cabeça, o grande dilema das sociedades actuais: onde e como ocupar de forma produtiva toda a população. No âmbito das correntes dominantes da economia, a única solução admissível, ainda que de efeitos temporários, passa por se retomarem as medidas de estímulo à procura, por via da intervenção do Estado, tal como propugna a teoria keynesiana para a saída do ciclo recessivo. Mas a resistência a esta perspectiva, por parte do actual poder neoliberal, torna cada vez maior a probabilidade de, no imediato, se aprofundar a catástrofe social e de os seus efeitos se protelarem indefinidamente.
Daí que, comece a equacionar-se e pareça já só fazer sentido uma solução de longo prazo, apenas possível com uma alteração radical da organização social, desde logo no que respeita à forma como o trabalho é encarado: de simples mercadoria em direito pessoal efectivo, tutelado pelo Estado, implicando, nomeadamente, a redução do tempo actual e a sua redistribuição, por forma a permitir-se o pleno emprego das capacidades humanas disponíveis e o acesso de todos, em condições de igualdade, às potencialidades presentes na sociedade. Qualquer outra alternativa não passará de paliativo temporário, destinada a fracassar e a, de forma recorrente, dar lugar a outra,... a mais outra,... Até ao colapso final?
Enquanto isso, não param de ser emitidos sinais inquietantes de um mundo em acelerada desagregação. O que se passa com as actuais guerras entre ‘gangs’ rivais – tenham eles a sofisticação das múltiplas máfias (russas, tríades chinesas ou cartéis da droga) ou o amadorismo ‘romântico’ dos simples ‘gangs’ de bairro – reflecte um pouco a tendência desagregadora para onde se orienta a competição fora do controle do Estado. Ou do espírito subjacente à decantada liberdade individual por trás da iniciativa e criatividade mercantis e dos negócios. O risco da violência descontrolada evoluir para uma situação de desagregação social próxima da anomia não é de todo ficcional...
Precisamente o medo de desagregação social (em resultado da aplicação das receitas liberais) - por potenciar a via revolucionária - renasce entre os mais lúcidos teóricos da burguesia. Remonta-se ao início do séc. XX, para onde somos remetidos pela comparação – exposta no último ‘Prós e Contras’ pelo liberal João Confraria – com o que se passa hoje a nível da desigualdade na distribuição do rendimento, porque ‘nalguns casos, adianta, a percentagem da riqueza que vai para o 1% mais rico da população é semelhante à de então’, ou seja, ao invés de diminuir, tem vindo a aumentar perigosamente! Por trás de uma postura teórica pretensamente asséptica, relembra que o actual nível de desigualdades é, como então, propício a ‘acontecerem coisas terríveis como a revolução russa e o que se lhe seguiu’. E avança explicando que ‘quando a desigualdade atinge níveis que as pessoas consideram insuportáveis ou indecentes, tendem a manifestar-se de forma pouco civilizada (!), embora com o apoio de aparelhos ideológicos mais ou menos estranhos (?). E é isso que temos de evitar’, conclui.
Afinal, a única preocupação por trás da prosápia condoída com que esta gente adorna os discursos sobre a desigualdade (e os seus efeitos) é mesmo e só, hoje e sempre, o ‘fantasma’ da revolução e o papão do comunismo!
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