quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

As falsas evidências do senso comum: equívocos ou imposturas? – III

Ironias da História

O ousado descaramento com que agora se culpam os Estados do descalabro financeiro e se mesclam interesses num amalgamado ‘nós’ a puxar ao oportunismo nacionalista, merece ainda, a fechar estes breves comentários sobre equívocos e falsidades que se acobertam sob a capa de evidências ou verdades do senso comum, uma última nota.

Apesar de tudo parecer já ter sido dito sobre o papel contraditório que coube ao Estado assumir na actual crise – primeiro como salvador de um sistema à beira da catástrofe, depois, quase envergonhado, alvo de ataques incontidos por haver gasto ‘em aventuras desnecessárias’ (!) recursos que, afinal, não dispunha – há um aspecto que, a meu ver, não tem sido devidamente destacado. Refiro-me ao facto surpreendente – e algo irónico – de o capitalismo ter sido salvo da sua mais que certa derrocada, em boa medida (ainda que sem uma contabilidade rigorosa) pela ‘mão (quase) invisível’ de um país que, a despeito de todas as incoerências, continua a proclamar-se ‘comunista’!

Com efeito, se ‘esta’ China não existisse ou não tivesse actuado, antes e depois da eclosão da crise, comercial e financeiramente, comprando os produtos e as dívidas dos países capitalistas desenvolvidos, nomeadamente dos EUA, do Japão e da Alemanha, a sucessão de acontecimentos que culminou no Verão de 2008 naquilo que ficou conhecido pela ‘crise do sub-prime’ teria muito previsivelmente precipitado a derrocada do capitalismo, ter-se-ia assistido primeiro ao ‘salve-se quem puder’ – cada país empenhado em defender os seus interesses próprios – e, por fim, ao caos completo.

Ora, o que de objectivo se pode apurar é que tal só foi possível concretizar não pela discutível natureza do seu regime (dito comunista), mas por dispor de um Estado centralizado e forte (um trunfo que se revelou essencial – à parte juízos políticos sobre o seu carácter totalitário! – para gerir e suster os efeitos da crise), capaz, pela dimensão e peso relativo do país na cena internacional, de influenciar as trocas comerciais e alavancar recursos bastantes para ocorrer aos principais focos de perturbação mundiais, tanto de natureza económica como financeira.

Entretanto, a ‘saúde económica’ que se diz bafejar a Alemanha – exibindo enormes vantagens competitivas, assentes na diferenciação tecnológica e organizativa, que lhe permitem ditar no seio da UE, em seu benefício exclusivo, as regras e os tempos de resposta à crise – ameaça esboroar-se, em breve, perante o avanço alucinante que, nesse domínio, a China (e não só) tem vindo a imprimir em todos os sectores económicos. Depois de, na última década, ter arrasado o têxtil e dominado a electrónica, está já a avançar para o assalto final sobre o automóvel, a aeronáutica,...

As transferências de tecnologia – por deslocalização de empresas ou por contrapartida negocial aos apoios concedidos – são mais uma consequência na lógica desta globalização comandada pelo capital financeiro e onde, paradoxalmente (ou talvez não), a China ‘comunista’ adquiriu um poder incontestado. Mercedes e BM’s (ou equiparáveis) importados da China a preços das ‘lojas chinesas’? A Alemanha que se cuide, pois. Breve, breve, irá chegar a sua hora,... quero eu dizer, a dos seus trabalhadores!

Mas se a Alemanha consegue apresentar, por enquanto, uma aparente unidade de interesses entre capital e trabalho, mercê do seu histórico avanço tecnológico, entre nós o aprofundamento da crise tem servido – estranha ironia – para finalmente se exporem, em perspectiva e dimensão mais próximas da realidade, as gritantes disparidades que atravessam a estrutura social portuguesa, tornando cada dia mais ridículo o discurso de um pretenso destino comum ou colectivo – como se não existissem classes e estas não traduzissem realidades sociais bem distintas. Pois que dizer então da ultrajante insistência com que políticos, empresários e comentadores (os mesmos do costume) pretendem amalgamar o jogo de interesses contraditórios numa estranha toada de pendor nacionalista, sempre que se preparam para impor ao país medidas de maior austeridade, que no final apenas sobrecarregam os mais desfavorecidos?

Sem comentários: