
Por estes dias não há cão nem gato que não se tenha já pronunciado
(ou sinta a necessidade de ainda o fazer) sobre os terríveis malefícios que a
simples ideia de referendo à Europa suscita. Seja qual for o seu conteúdo e
motivação – questionar o Tratado Orçamental, como propõe o BE, apenas no caso de
Bruxelas decidir aplicar sanções a Portugal pelo déficit excessivo de 2015; até
à saída do RU da UE por força do Brexit – só falar em referendo convoca as sete pragas do Egipto, acorda todos
os demónios e prenuncia as piores catástrofes. O bastante até para, por uma
vez, congregar ‘felinos e caninos’ no
sentimento único de que invocar o referendo é um disparate, um erro, um despropósito, até uma ilegalidade (versão PCP), nada justifica tal extremismo, os britânicos que o digam, já
arrependidos (?) do irresponsável Brexit! Um vitupério que assim se abate sobre
os portugueses, só explicável vindo de quem vem, uma corja de irresponsáveis, é
o que este Bloco é. Mesmo os que até aqui o admitiam e pugnavam pela sua
realização parecem submetidos à histérica onda de unanimismo que perpassa
indignada pela opinião pública, com o argumento de que, referendo sim, mas não
agora, que falta de sentido de oportunidade, logo depois do Brexit – reduzido
às componentes xenófoba, racista e fascista!
Ao mesmo tempo, é certo, rasgam
as vestes em protesto contra as declarações ‘imperiais’ (?) de eminentes
responsáveis germânicos, porventura os mais representativos dos seus
interesses. Haja o que houver, dizem estes, as regras são para cumprir, mas os
portugueses pós-Passos Coelho parecem tê-lo esquecido! Tanto que até as
principais preocupações do Sr. Schauble não se prendem com a situação do ‘seu’ Deustche
Bank (apenas o banco mais exposto às
dívidas, quase um ano de PIB mundial!), mas antes com a posição do actual
Governo português, relutante em seguir as regras impostas pela UE/Berlim. Quanto as do seu patrício Regling, para quem a maior preocupação não advém dos
efeitos do Brexit, mas sim de Portugal ousar reverter as ‘reformas’ (!) de
Passos, onde tais regras se encontravam plasmadas – mas onde já se viu tal
descoco? A onda de emigração, a prostração em que agoniza a Grécia, a ascensão
dos fascismos na Europa, o anúncio de mais referendos sobre a UE (checos e
húngaros já se adiantaram…), a catástrofe financeira eminente (o DB que se cuide)…,
nada disto perturba o sossego destas arrogantes figuras da mais pura estirpe
teutónica, hoje vertida na disciplina ordoliberal que pretendem impor na Europa.
O que os preocupa mesmo são, para já (eles antecipam (!) pior no futuro), as
duas décimas do déficit português em 2015!
É possível que a palavra pouco diga
à esmagadora maioria das pessoas (ou nem sequer tenham ouvido falar dela), mas o
importante seria adoptar-se uma filosofia do género do ordoliberalismo alemão, ‘ponham os olhos nos resultados’, não há
como um povo disciplinado e de trabalho. Apesar de excomungada pelas revelações
do pós-guerra sobre os campos de extermínio nazi, mantém-se incólume a
convicção de que só ‘o trabalho liberta’,
só o estrito cumprimento da ‘disciplina
germânica’, aplicada à economia sem interferências políticas (a disciplina do mercado, pois claro), dá
bons resultados. Se a democracia atrapalha os resultados há que disciplinar a
democracia, estabelecer-lhe limites orçamentais, se necessário – e quando
possível! – constitucionais até. Só assim se garante plena liberdade ao
‘mercado livre’, liberto até das desagradáveis surpresas que sempre acarretam
as consultas populares decorrentes de mesquinhas veleidades democráticas. Quem
não tem dinheiro não tem vícios – e o vício da democracia pode ser considerado
prejudicial à saúde… dos mercados.
Mesmo descontando a sobranceria dos
dois emproados germânicos – meros títeres do mercado nesta conjuntura – resta,
no entanto, em aberto a resposta à
ameaça das sanções antes que elas se concretizem. Que não passa de pressão
política, habitual em tais casos – vai-se ouvindo por aí na senda do argumento ‘marcelista’,
logo desenvolvido por alguns para proclamarem estar eminente o famigerado Plano
B da austeridade. Para uns (à direita) deve atender-se mais ao
conteúdo da mensagem – a insustentável situação financeira portuguesa, a
caminho da bancarrota, afiançam – em detrimento dos mensageiros – que não
deviam ter dito o que disseram (ao fazê-lo, podem ter desvalorizado tal
conteúdo, reduziram até o poder da oposição interna, levando a que os olhares
se desviassem do essencial). Para outros (à esquerda), é preciso
argumentar junto de Bruxelas e da Comissão com a irracionalidade da medida, por
ela mesma (afinal foi-se além da troika e o resultado pode ser um castigo?),
mas também por inoportuna (perante o Brexit, a crise dos emigrantes, o ascenso
dos nacionalismos e mil e um argumentos possíveis de invocar, que sentido fazem
as duas décimas a mais no déficit de 2015?).
A estes, em especial, é bom
recordar que, precisamente há um ano, os negociadores gregos também apareceram
em Bruxelas munidos da razão para fazerem vingar as suas posições. Sabe-se qual
foi a resposta, impiedosa e brutal, não sem antes o cinismo dos interlocutores
europeus ter vindo em forma de um tão absurdo quanto monstruoso diktat: ‘você (Varoufakis) até tem razão no que está
a dizer, mas vamos esmagar-vos à mesma’. O germânico ordoliberalismo
imperante não se compadece com argumentos racionais nem olha a meios para
atingir os seus objectivos, o que importa é induzir na imensa maioria, através de
uma subserviente comunicação social, a realidade virtual e fantasiosa da alternativa única (TINA) que a leve a
aceitar como inevitável a contínua degradação das suas condições de vida
(quebra de rendimentos e de direitos) em troca de um mirífico e cada vez mais
longínquo nirvana faustoso de uma União imperial feita extensão da Alemanha,
não tolerando quaisquer dissonâncias por forma a evitar perigosos precedentes
que possam pôr em risco o controle social pelas leis do mercado. Beliscar,
em última análise e como sempre, os interesses dos 0,5% – cada vez mais longe
dos já escandalosos 1% de 2008! – que detêm a riqueza e o poder político
mundial.
Não sei se a ameaça do
referendo é a melhor resposta à ameaça das sanções. Mas sei, pela sabedoria
popular, que ‘enquanto está quente é que se deve malhar o ferro’,
justamente agora que a efervescência provocada pelo Brexit mais acentua as
fragilidades de quem se arroga um poder absoluto. E sei que, pior que tudo, é
permanecer parado, com medo das consequências (‘olha a Grécia’, gritam),
couraçado na indómita fé nas Instituições (!), esgrimindo apenas os argumentos
racionais e acreditando que as sanções nunca serão aplicadas. Porque sei também
que, no final prevalece a mensagem bem conhecida dos gregos e para a qual eles
não se tinham preparado: ‘vocês podem ter
muita razão, mas mesmo assim nós vamos esmagar-vos’. É que a maior ameaça
ao projecto hegemónico dos mercados por ora protagonizado pelo ordoliberalismo
alemão (que vai muito para além dos meros aspectos nacionalistas), não é o
brexit, não são as migrações, o ascenso do fascismo… A maior ameaça é mesmo o
eventual sucesso da alternativa constituída pela ‘geringonça’ portuguesa!