quinta-feira, 10 de julho de 2014

Irmãos desavindos, presos na lógica dos ‘mercados livres’

Os últimos tempos têm sido particularmente agitados pelos ‘conflitos’ que emergiram em duas das mais tradicionais famílias lusas: uma da área dos negócios, o BES, a outra do campo da política, o PS. Em ambos assumem protagonismo figuras proeminentes dos dois universos. Em resumo e de forma algo simplista, da parte do BES, Ricciardi enfrentou o primo Ricardo (até agora o intocável líder do Grupo) e o negócio de família desfez-se; do lado do PS, o eterno putativo líder Costa decidiu (finalmente!) desafiar o precário actual líder Seguro e o partido ameaça fraccionar-se.

O desenrolar das peripécias mais ou menos rocambolescas (no caso do PS), ou invariavelmente escabrosas (no caso do BES), têm feito as parangonas dos jornais e alimentado o comentário ávido de tricas nas televisões, mas está longe de constituir o essencial destas duas exemplares histórias domésticas. Tratou-se, em qualquer dos casos, de desenlaces há muito anunciados. No que respeita ao BES, não obstante toda a imprensa se afadigar agora em desvendar os meandros dos negócios sórdidos da família (e dos correligionários que os servem, servindo-se), eles não se afastam muito dos comportamentos adoptados pelos outros intervenientes no negócio bancário e financeiro a nível global. Há muito era sabido que toda a engenhosa criatividade – sintomaticamente designada por ‘engenharia financeira’! – a que os bancos se tinham entregue nas últimas décadas só podia ter este desfecho. Todos eles, aliás, se viram ‘obrigados’ a praticá-la, em nome de um realismo que, a não ser adoptado, os marginalizaria e eliminaria deste feroz jogo competitivo.

Mas depois do que aconteceu com o BPN, BPP, BCP, Banif, agora o BES (e, se houver rigor, todos os restantes); depois dos episódios em torno do Lehmans, AEG, Citigroup, Lloyds, Royal scottish, Barclays, BNP Paribas, UBS, Deutsche e tantos outros; do que se sabe da actuação da Goldman Sachs, do JPMorgan ou das agências de rating,... estranho é que ainda se insista na tese de que tudo teve origem no comportamento desviante de alguns gestores gananciosos e mal formados (!), de que se tratou ‘apenas’ de falhas de regulação, mais ou menos graves e extensas conforme os casos e os lugares. Na realidade o que aconteceu não pode reduzir-se a um mero desvio, antes se enquadra num padrão sistémico, inelutável por natureza, que se insere na lógica dos ‘mercados livres’ e visa responder aos desafios da concorrência.

Essa lógica determina que as barreiras, por ínfimas que sejam, estabelecidas por uma qualquer regulação ao curso normal do mercado (em nome de uma sociedade mais civilizada – ou menos ‘bárbara’), tenderão a ser ultrapassadas e quebradas, pois os agentes dos ‘mercados livres’ tudo farão, em nome da sacrossanta ‘liberdade do comércio’ (e da sobrevivência!), para as afastar, as manipular, as desvirtuar, as corromper. Mesmo atendo-nos apenas nos estritos limites legais (excluindo, pois, práticas ‘à margem da lei’ como a usual manipulação das condições de mercado, nomeadamente concertação de taxas, como ocorreu com a LIBOR), bastará referir o caso das legais ‘off-shores’, a que todos eles recorrem – ainda que bem protegidos por impenetráveis segredos bancários. O que, desde logo, é bem sintomático, pois permite-se (ou tolera-se) a existência deste tipo de expedientes, mas lança-se o anátema ou até se criminalizam, quantos a ele recorrem!

Já quanto à disputa que, por estes dias, opõe Costa a Seguro pela liderança do PS, mais que os amuos do último ou a análise ao carácter de ambos (ainda que relevante), importa conhe- cer e avaliar os respectivos programas políticos. E se, até agora, o saldo nesse domínio é deveras confrangedor (se bem que esperado), sem ideias ou propostas, a própria dinâmica que resulta do confronto pode bem forçar o debate por fazer sobre o papel das correntes social-democratas e socialistas na actualidade. Porque importante mesmo é saber se a social-democracia ainda tem alguma coisa de diferente a oferecer às sociedades capitalistas globalizadas do Séc. XXI que não seja uma variante adocicada do neoliberalismo, se ainda é possível vir a constituir uma real alternativa política ao avassalador domínio tecnocrata da ideologia dos ‘mercados livres’, capaz de inverter a lógica em que todos os ‘Espírito Santos’ e demais financistas têm baseado o seu poder ancestral.

Capaz, em suma, de liderar a urgente alteração radical das relações do poder político, traduzida, nomeadamente, na disposição para enfrentar (e controlar) o poder económico e libertar o País da actual sujeição externa – que passa, antes de mais, pela reestruturação da dívida – base da soberania e autonomia indispensáveis à prática da democracia e garante do Estado de direito. Mas também na atitude perante os cidadãos e na forma de utilização do aparelho de Estado (normalmente posto ao serviço das respectivas clientelas partidárias). Veremos então se este PS se deixou enredar e subjugar pela dominante ideologia neoliberal dos ‘mercados livres’ a ponto de – como é expectável – a alternativa que corporiza se poder tornar irrelevante para a decisão política essencial.

Desfeito o negócio familiar dos ‘Espírito Santo’ na banca – apenas mais um episódio de uma lista interminável! –, resta então apurar, a começar por este PS desavindo, até onde resistirá a ideia e a prática de uma social-democracia europeia autónoma – e não apenas mais uma variante neoliberal! – perante a lógica avassaladora dos ‘mercados livres'.

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