A pantomina das reformas estruturais
As
reformas estruturais constituem, no discurso oficial do Governo, a sequência lógica da
política de estabilização financeira e consolidação orçamental. Na realidade,
porém, o que se percebe das medidas que têm vindo a ser adoptadas, de teor
normativo ou no domínio das privatizações, é que elas fazem parte de um plano
político mais amplo e de muito maior ambição: limitar o sector público às
funções tradicionais da segurança, cobrança fiscal e administração da justiça,
transferindo para os privados tudo o que é rentável; atrofiar o Estado Social,
reduzi-lo ao Estado mínimo; tornar o País ‘amigo’ dos mercados, cair-lhes nas
boas graças.
O fiel paradigma deste ímpeto
reformador encontra-se bem representado nas afirmações de um dos principais
epígonos e paladino desta política, o inefável Camilo Lourenço, de acordo com o
qual já ‘realizamos (este
Governo, claro) mais
reformas estruturais nos últimos dezasseis meses do que nos últimos vinte anos’
(!!!). E quais foram então essas reformas? Segundo Camilo (que debita doutrina sem nunca se sujeitar ao contraditório!) foram essencialmente
três: a flexibilização da legislação laboral, a lei do arrendamento
e as regras de licenciamento para a actividade económica.
Ao lado do colossal poder reformista destas três
medidas (e à parte a pindérica pretensão de se ser ‘inovador’ nessas áreas),
reformas como a implantação do SNS (incluindo a rede de saúde em
todo o País), a expansão do ensino e da ciência (incluindo centros de
investigação de excelência), a nova estrutura viária (incluindo a rede
de auto-estradas, não obstante os excessos cometidos) – e apenas estas três
para contrapor ao ‘número’ do Camilo – assumem papel secundário e relevância
económica subalterna. Perante propósitos tão ambiciosos e a magnitude dos
efeitos esperados das três ‘camilianas’– até agora: desemprego e
precariedade crescentes, aumento das desigualdades, maior
pobreza,... – aquelas apenas podem aspirar à pobre figura de ricos falidos
e na penúria!
Dir-se-á,
porventura, que essas três reformas se iniciaram há mais de vinte anos e que,
portanto, não estariam no radar escrutinador do sagaz Camilo ao estabelecer o
confronto entre os dois períodos. Ainda assim é bom recordar que todas elas
tiveram a maior concretização precisamente ao longo dos últimos 20/25 anos e
que os efeitos estrondosos na modernização da sociedade parecem não poder ser
postos em causa, nem interna (talvez então com algumas excepções camilianas),
tão pouco externamente (aqui talvez com certos reparos merkelianos). Pelo menos
a avaliar pelos parâmetros internacionais, seja na saúde, no ensino ou nas
estradas (não obstante, repito, os excessos) – o salto qualitativo em qualquer
destes sectores é enorme.
Não se pense, porém, que fica por aqui a actual sanha
reformadora. Camilo enumera mais 11 reformas, desde a emblemática (e
permanente) ‘modernização da Administração Pública’, à sintomática ‘reforma
da geração de abril’(!). A primeira prolonga-se nas três seguintes,
englobando o sistema fiscal, a saúde e o ensino (apontando à privatização), a
justiça. Pelo meio um conjunto de intenções vagas e voluntaristas, como a de
que ‘temos de ser mais competitivos’! Ora, a única verdadeira ‘reforma
administrativa’ passa por descentralizar a decisão – o que
implica avançar com a regionalização. Mas essa será, mais uma vez, adiada,
ou por não ser oportuno (a crise...) ou por não ser desejada (considerada
heresia para a direita em geral e para alguma esquerda). Com prejuízo para o
aprofundamento da democracia, o bem-estar das pessoas e... a redução de gastos.
‘Reformar a geração de Abril’, para além da
provocação, soa a toque de finados, a desforra. Descaradamente alardeia-se, assim, o grande
objectivo da actual política: enterrar em definitivo o espírito de Abril e do
que ele ainda representa na transformação da sociedade e das mentalidades.
Gorada, por enquanto, a almejada revisão constitucional, o
objectivo agora é desgastar-lhe o conteúdo, forçando ao limite a letra e o
espírito que a enforma, confrontando-a permanentemente, descaracterizando-a,
ignorando-a. Passar por cima da única barreira que, até agora, ainda impedia a
plena concretização do plano gizado por esta política, a de reforçar o capital
à custa do trabalho.
Sem surpresas, as reformas
estruturais deste Governo propõem-se, pois, completar o processo de
desmantelamento do Estado Social e a sua substituição pelo Estado mínimo,
prosseguir na lógica da destruição produtiva do País, porventura
especializando-o na venda do único recurso natural transaccionável em que é
relativamente abundante, o Sol, transformando-o em destino turístico
preferencial para Nórdicos e alemães. Será esse o resultado que o
fundamentalismo liberal irá decerto conseguir da experiência de laboratório em
que transformou o País, a tanto se reduz o contributo académico para a construção
dualista europeia que o teórico Ministro Gaspar exibirá aos donos da
Europa: o Sul, pobre, a servir de coutada e estância de férias aos ricos do
Norte!