domingo, 30 de dezembro de 2012

Mercados, mentiras e pantominas – II


A pantomina das reformas estruturais

As reformas estruturais constituem, no discurso oficial do Governo, a sequência lógica da política de estabilização financeira e consolidação orçamental. Na realidade, porém, o que se percebe das medidas que têm vindo a ser adoptadas, de teor normativo ou no domínio das privatizações, é que elas fazem parte de um plano político mais amplo e de muito maior ambição: limitar o sector público às funções tradicionais da segurança, cobrança fiscal e administração da justiça, transferindo para os privados tudo o que é rentável; atrofiar o Estado Social, reduzi-lo ao Estado mínimo; tornar o País ‘amigo’ dos mercados, cair-lhes nas boas graças.

O fiel paradigma deste ímpeto reformador encontra-se bem representado nas afirmações de um dos principais epígonos e paladino desta política, o inefável Camilo Lourenço, de acordo com o qual já ‘realizamos (este Governo, claro) mais reformas estruturais nos últimos dezasseis meses do que nos últimos vinte anos’ (!!!). E quais foram então essas reformas? Segundo Camilo (que debita doutrina sem nunca se sujeitar ao contraditório!) foram essencialmente três: a flexibilização da legislação laboral, a lei do arrendamento e as regras de licenciamento para a actividade económica.

Ao lado do colossal poder reformista destas três medidas (e à parte a pindérica pretensão de se ser ‘inovador’ nessas áreas), reformas como a implantação do SNS (incluindo a rede de saúde em todo o País), a expansão do ensino e da ciência (incluindo centros de investigação de excelência), a nova estrutura viária (incluindo a rede de auto-estradas, não obstante os excessos cometidos) – e apenas estas três para contrapor ao ‘número’ do Camilo – assumem papel secundário e relevância económica subalterna. Perante propósitos tão ambiciosos e a magnitude dos efeitos esperados das três ‘camilianas’– até agora: desemprego e precariedade crescentes, aumento das desigualdades, maior pobreza,... – aquelas apenas podem aspirar à pobre figura de ricos falidos e na penúria!

Dir-se-á, porventura, que essas três reformas se iniciaram há mais de vinte anos e que, portanto, não estariam no radar escrutinador do sagaz Camilo ao estabelecer o confronto entre os dois períodos. Ainda assim é bom recordar que todas elas tiveram a maior concretização precisamente ao longo dos últimos 20/25 anos e que os efeitos estrondosos na modernização da sociedade parecem não poder ser postos em causa, nem interna (talvez então com algumas excepções camilianas), tão pouco externamente (aqui talvez com certos reparos merkelianos). Pelo menos a avaliar pelos parâmetros internacionais, seja na saúde, no ensino ou nas estradas (não obstante, repito, os excessos) – o salto qualitativo em qualquer destes sectores é enorme.

Não se pense, porém, que fica por aqui a actual sanha reformadora. Camilo enumera mais 11 reformas, desde a emblemática (e permanente) ‘modernização da Administração Pública’, à sintomática ‘reforma da geração de abril’(!). A primeira prolonga-se nas três seguintes, englobando o sistema fiscal, a saúde e o ensino (apontando à privatização), a justiça. Pelo meio um conjunto de intenções vagas e voluntaristas, como a de que ‘temos de ser mais competitivos’! Ora, a única verdadeira ‘reforma administrativa’ passa por descentralizar a decisão – o que implica avançar com a regionalização. Mas essa será, mais uma vez, adiada, ou por não ser oportuno (a crise...) ou por não ser desejada (considerada heresia para a direita em geral e para alguma esquerda). Com prejuízo para o aprofundamento da democracia, o bem-estar das pessoas e... a redução de gastos.
 
Reformar a geração de Abril’, para além da provocação, soa a toque de finados, a desforra. Descaradamente alardeia-se, assim, o grande objectivo da actual política: enterrar em definitivo o espírito de Abril e do que ele ainda representa na transformação da sociedade e das mentalidades. Gorada, por enquanto, a almejada revisão constitucional, o objectivo agora é desgastar-lhe o conteúdo, forçando ao limite a letra e o espírito que a enforma, confrontando-a permanentemente, descaracterizando-a, ignorando-a. Passar por cima da única barreira que, até agora, ainda impedia a plena concretização do plano gizado por esta política, a de reforçar o capital à custa do trabalho. 


Sem surpresas, as reformas estruturais deste Governo propõem-se, pois, completar o processo de desmantelamento do Estado Social e a sua substituição pelo Estado mínimo, prosseguir na lógica da destruição produtiva do País, porventura especializando-o na venda do único recurso natural transaccionável em que é relativamente abundante, o Sol, transformando-o em destino turístico preferencial para Nórdicos e alemães. Será esse o resultado que o fundamentalismo liberal irá decerto conseguir da experiência de laboratório em que transformou o País, a tanto se reduz o contributo académico para a construção dualista europeia que o teórico Ministro Gaspar exibirá aos donos da Europa: o Sul, pobre, a servir de coutada e estância de férias aos ricos do Norte!

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Mercados, mentiras e pantominas – I


A grande mentira: TINA

Como já por mais de uma vez se afirmou aqui, a forma como a realidade da crise financeira actual – a crise da dívida – nos é apresentada reduz-se a uma colossal mentira envolta numa monstruosa construção ideológica para fins políticos. Resumidamente, de acordo com o discurso dominante, o descontrole da dívida pública é o resultado de nos últimos anos as pessoas terem vivido acima das suas possibilidades. Em consequência, o reequilíbrio das contas só será possível através de drásticos cortes na despesa pública, o que implica a aplicação de um inevitável programa de austeridade (aumento de impostos e redução das prestações sociais), pois não há alternativa à política visando conciliar o rendimento disponível com o consumo efectivo, ou seja, na prática empobrecer o País.

A simplicidade deste discurso, aparentemente inquestionável na sua lógica cruel, parecia destinado, à partida, à aceitação resignada pelos seus destinatários – os contribuintes – não fora deparar com dois ‘pequenos’ pormenores: por um lado, a origem da crise não é devida, muito menos redutível, à generalização apontada (todas as pessoas viverem acima das suas possibilidades), mas antes à especulação financeira e ao restrito número por ela beneficiado (esses, sim, vivendo largamente acima das suas possibilidades); por outro, quem está a pagar a crise e a sofrer os anunciados cortes (por via fiscal, laboral ou redução das prestações sociais) – o trabalho – só marginalmente pode ser responsável por ela, ‘apanhados’ na rede mirífica tecida pelo marketing financeiro (‘compre hoje, pague amanhã’). Estas duas conclusões cada vez se tornam mais evidentes perante a opinião pública e a generalidade das pessoas e isso, conjugado com o seu previsível agravamento nos próximos tempos, pode bem fazer a diferença no desenrolar da situação.

Tanto mais que esta construção básica da ‘inevitável austeridade’ e do ‘não há alternativa’ (o famoso acrónimo thatcheriano ‘TINA’) não está sozinha na política portuguesa. Encobrem-se propósitos pouco claros numa série de outras mentiras ‘auxiliares’, não menos profundas e perigosas. Desde logo a que se tece em torno das ditas ‘reformas estruturais’, que mais não visam, em síntese, que acelerar o processo, aberto pelo dito ‘programa de austeridade’ (a pretexto de se cumprir o acordado com a famigerada troika), de transferência de recursos do trabalho para o capital, com o objectivo da recomposição do poder financeiro, abalado pelo jogo mal sucedido do casino em que se transformou a especulação mundial. Pela sua importância, dar-se-á adiante um maior destaque a este ponto.

Descobre-se o embuste na tentativa de se alterar o sentido a expressões consolidadas. Como é o caso da recente discussão em torno dos ‘direitos adquiridos’, glosada, por exemplo, nas inúmeras aparições e outras intervenções em que Isabel Jonet, a conhecida impulsionadora do Banco Alimentar, se desdobrou nos últimos tempos. Para esta corrente, os direitos adquiridos do âmbito da solidariedade social, mesmo que garantidos constitucionalmente, devem ser entendidos como benesses e regalias, sujeitos, portanto, às mudanças de orientação política que, sob pretexto ou não da carência de recursos, os podem atribuir, reduzir, retirar,... Já os direitos adquiridos pelo poder financeiro (créditos ou parcerias), de modo algum devem ser postos em causa, por temor aos mercados... À garantia republicana e constitucional da solidariedade, contrapõe-se o valor cristão da caridade!

Recorre-se, com frequência, a terminologia equívoca para expressar conceitos e abrir caminho a práticas não aceites de outro modo. Ou prefere-se a utilização de expressões menos hostis, para não irritar os mercados! Qual a diferença, por exemplo, entre ser imprescindível ‘rasgar o memorando’ ou ‘negociar um novo’? À parte a maior agressividade que parece contida na primeira expressão, ambas traduzem, na sua essência, rigorosamente o mesmo. A primeira é, como se sabe, utilizada pelo PC e BE; a segunda tem vindo a ser adoptada cada vez mais no discurso dos responsáveis do PS (António Costa e o próprio Seguro). Mas tem servido de desculpa para as ‘esquerdas’ não terem conseguido, até à data, estabelecer uma plataforma de entendimento sobre este crucial ponto da actualidade política, da vida das pessoas.
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