segunda-feira, 30 de julho de 2012

A oportunidade perdida de uma crise


A obsessão pela dívida e pela via da austeridade como solução inevitável e única (a tese do ‘não há alternativa’) para a mesma, conduziram o projecto europeu à beira do fracasso. O Euro – sente-se – está preso por um fio e os comentários actuais dos sempre disponíveis serventuários do regime (seja qual for a tendência que o caracterize) centram-se, num quase orgíaco ritual necrófago, em sofregamente anteciparem o momento da sua extinção, mais do que em delinearem alternativas ao caminho que nos conduziu aqui. 

Do outro lado, mais avisados e recorrendo ao sempre salutar exemplo da História (o exemplo da Grande Depressão é cada vez mais invocado para justificar uma alternativa à conduta seguida), renascem as teorias keynesianas para dizerem que tudo o que tem estado a ser feito até agora na Europa para sair da crise, através da imposição da referida via austeritária e contracionista, tem sido precisamente o contrário do que deveria ter sido feito: aposta decidida numa política expansionista, como no início da crise, então para acorrer ao colapso provocado pelas despesas e dívida privadas, agora no investimento público para relançar a procura e combater o desemprego. Em conformidade, o resultado é o agravamento da crise e, caso nada se altere, o inevitável desfecho do fracasso anunciado.

Uns e outros, porém – os que têm aprofundado a crise (pela via da austeridade punitiva ou redentora) ainda que digam pretender sair dela, e os que peroram sobre modos alternativos para a ultrapassar – todos parecem ignorar um aspecto que, por força da crise, mais evidente se tornou: a escassez de recursos. Os obcecados pela dívida, é certo, falam em escassez, mas apenas dos recursos financeiros, delapidados num ápice, sabem-no bem, após o rebentar das bolhas imobiliárias (EUA, Irlanda, Espanha,...), como forma de suster o inevitável contágio à Banca (para onde foram canalizados então todos os recursos disponíveis) e, por fim, na crise social que se lhe seguiu e nas crescentes ajudas públicas que tem exigido.

Do que aqui se fala é, pois, da escassez de recursos naturais, todos os dias mais evidente, mas agora ainda mais exposta pela própria sequência da crise e seus efeitos na produção e comércio alimentar. A crise poderia então ter actuado como aviso para os limites com que estamos confrontados, servido de plataforma para se questionar a tese do ‘crescimento contínuo’ a que o sistema capitalista obriga (e sem o qual as crises se instalam), para tornar consciente a necessidade de se evitar o desperdício. Para impor a lógica de uma mais racional gestão global e individual da riqueza. Mas assiste-se exactamente ao contrário: todos os discursos destacam a importância do crescimento como única solução para a crise; sob pretexto de se reduzir a despesa, corta-se nos direitos essenciais (e, de algum modo, legitima-se o desperdício); fomenta-se a concentração da riqueza em lugar da sua indispensável maior redistribuição.

Enquanto os austeritários conduzem o Mundo, através das políticas impostas à Europa, para um colapso de consequências imprevisíveis (ainda que a pretexto do que designam por ‘austeridade expansionista’, crentes na retoma económica associada à confiança restaurada por via dos cortes na dívida), as medidas propostas pelos keynesianos, a ser adoptadas (e parece cada vez mais difícil que o sejam, pois isso implicaria aos ‘instalados’ abdicarem dos privilégios conquistados – ou extorquidos?), os seus efeitos não tardariam a esgotar-se, com o mundo a mergulhar em nova crise. Só mesmo uma radical inversão da orientação económica actual poderá abrir perspectivas para uma saída sustentável desta situação.

As ‘economias livres de mercado’ (melhor dizendo, de ‘mercado livre’!), como se sabe, entram em crise quando param de crescer ou crescem abaixo de um determinado limite (em regra, superior a 1%), mesmo sem o auxílio de outros factores, como sucedeu na actual. Era tempo, pois, face à experiência histórica anterior e ao que a teoria já consegue explicar, de se encontrar uma forma de escapar à armadilha do crescimento contínuo de que se alimenta o sistema capitalista – em oposição aos limites naturais do planeta. Que terá de passar, inevitavelmente, pela alteração radical da organização social baseada na relação salarial e no mercado do trabalho, procurando ajustá-la às exigências tecnológicas actuais e às necessidades reais das pessoas e das sociedades. Mas isso equivale por dizer ter de se apostar, por exemplo, numa forma radicalmente diferente de gestão do tempo de trabalho – tema já inúmeras vezes aqui trazido, mas em que nunca é demais insistir.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

As velhas cruzadas dos novos pregadores


A crise, já todos o sabem, mexeu (está a mexer, vai continuar a mexer...) com a vida das pessoas. Não de forma igual para todos. O que para a maioria se traduz em retrocesso e grandes dificuldades, representa para uns poucos a consolidação do seu poderio económico e social. A política, essa, parece alheia ao desenrolar dos dramas pessoais nela originados, relegada para adorno de decisões pretensamente técnicas e objectivas, manietada na lógica de uma ideologia que se afirma anti-ideológica. Manipulada na defesa de interesses pessoais ou de grupos minoritários.

Na génese desta crise encontra-se um facto, pouco destacado, mas de enorme importância na explicação da forma como foram sendo criadas as condições que a ela conduziram, as circunstâncias da sua eclosão e, agora, o emaranhado de situações e a rede de interesses que a perpetua e torna impossível ultrapassá-la. Trata-se da ‘tomada do poder das empresas pelos gestores’. Com o salutar propósito de introduzirem maior racionalidade na actuação das empresas, assumiram o comando da gestão e rapidamente passaram ao controle da decisão, neutralizando (na prática, destronando) os seus proprietários.

A pretexto da ‘criação de valor para o accionista’ e sob o genérico rótulo de ‘técnicas de gestão’, foram introduzindo um conjunto de regras orientadas essencialmente para o seu benefício pessoal. Atribuíram-se si próprios (ou recorreram, para dar menos nas vistas, a ardilosos, mas bem detectáveis, esquemas accionistas cruzados), remunerações obscenas com base em pretensos critérios técnicos, por via da indexação aos resultados obtidos no exercício (a eficácia do imediato sobre a gestão eficiente, pois a longo prazo surgirá, inexorável,... a crise!). Invadiram o espaço político, impuseram a sua forma de gestão aos serviços públicos (que passaram a ser geridos como empresas) e rapidamente se instalou a promiscuidade mais completa entre negócios e Estado, na admissão de pessoas ou na celebração de contratos. A corrupção e o tráfego de influências passou a ser encarado como natural. Em definitivo, a política ficou sequestrada nas malhas dos interesses privados e dos negócios.

Pretender desmontar agora este edifício, laboriosamente erguido ao longo dos últimos trinta anos, pondo em causa os benefícios auto-atribuídos, é tarefa que se apresenta quase impossível, dada a teia de relações estabelecida, dos negócios à política. Mais fácil será o edifício ruir, arrastando todos na derrocada fatal do que os actuais decisores prescindirem das mordomias obtidas e a que se consideram com pleno direito (até por via das normas legais arquitetadas para as alcançar). A ideologia neoliberal que incentiva o empreendedor criativo – fomentando a competição desregulada (ainda que se apregoe o contrário) e a ganância, em detrimento da cooperação e da solidariedade – enquadra e justifica bem toda a agressividade destes comportamentos aparentemente excessivos.

É este, de facto, o grande papel reservado ao actual primeiro ministro, o de arauto e defensor da causa liberal (a sua única formação – mal preparado em tudo o resto!) na impossível missão de justificar a austeridade imposta. Reduzido na capacidade de decisão, refugiado na defesa intransigente do ‘memorando da troika’, cuja política emana directamente de Berlim, Passos desdobra-se em intervenções, nas mais diferentes situações e lugares. As suas conhecidas gafes – o apelo à emigração, o desemprego como oportunidade,... – mais não são, afinal, que doutrina vertida dos manuais da economia liberal, nada de surpreendente, pois.

O ideólogo sobrepõe-se ao político, o missionário prosélito ao estadista sensato. E, acrescente-se, mais em nome de interesses do que causas. A insuportável pose de pregador e a alucinada entoação doutrinária de Passos, o tom convicto que não admite dúvidas nem se perde em incertezas no caminho traçado rumo aos objectivos definidos, denota bem o espírito de missão que o anima. Tal como nos idos dos descobrimentos, em que a ‘dilatação da fé’ justificava e servia de cobertura à mais prosaica ‘expansão dos negócios’, também agora a cartilha liberal esconde e legitima interesses instalados. O pretendido efeito anestesiante, contudo, está já a esgotar-se e até o pregador dá mostras de cansaço, de enervamento, de falta de compostura – o polimento da sua esmerada formação começa a esfarelar! Resta-lhe ainda a via da ‘intentona dos pregos’, na senda do seu frenético mestre e tutor.

Delapidada sem glória nem proveito a tão gabada paciência dos portugueses, a retraída apatia parece agora dar lugar à ameaçadora revolta. O fresco Verão pode trazer um Outono quente!

domingo, 8 de julho de 2012

Eu, se fosse alemão... (Parte 2)


Se algum mérito é possível descortinar nesta crise, ele é o de ter levado as pessoas a pensar para além da mera gestão do quotidiano. A questionarem as condições das suas existências, a não darem por adquiridos todos os benefícios alcançados, pessoais e sociais. A terem de restringir despesas, algumas certamente supérfluas. A procurarem explicações para aquilo que tem vindo a afectar, de forma mais ou menos intensa, as suas vidas. Na maior parte das vezes, é certo, servindo-se dos clichés ouvidos nos ‘media’ pelos comentadores de serviço ao regime, ainda assim bem além da modorra de telenovelas, futebóis, prédicas e demais rezas (religiosas ou laicas).

Um desses clichés mais ouvidos e lidos, já antes abordado neste blog, é o que, no quadro de uma UE composta pela enorme diversidade de países que a integram, tenta explicar o comportamento alemão na actual crise, na versão ‘Merkel’ (felizmente há outras versões), com a hipotética permuta de posições: ‘eu, se fosse alemão, também não gostaria de ver o meu dinheiro canalizado para suportar o défice de países gastadores’. A lógica inscrita neste aparente irrefutável – e insistente – argumento assenta pelo menos em dois falaciosos mitos: o mito do país gastador e o mito do país salvador!

Pretende-se transmitir a ideia, por um lado, que as dívidas soberanas (só lhes importa, por motivos óbvios, destacar estas) são sobretudo o resultado do excesso de gastos das políticas públicas, nomeadamente no domínio social (as teses correlativas do ‘viver acima das possibilidades’ e do consequente ‘excesso de garantias e regalias do Estado Social’); por outro, que tais desregramentos só podem ser resolvidos ou pelo recurso à via da austeridade própria ou suportados pela generosidade alheia dos ‘altruístas’ (!) países de ‘contas certas’, bem mais disciplinados e organizados.

A evidência de gastos públicos desnecessários, improdutivos ou até mesmo fraudulentos em algumas situações, não pode nem deve iludir que o essencial da dívida por trás da actual crise – e da dimensão por esta atingida – foi gerada pela roleta especulativa dos mercados, por inépcia dos responsáveis pela condução política da UE. Na ausência de órgãos próprios dotados de suficiente capacidade de decisão (e de personalidades de reconhecida aceitação e idoneidade!), a Alemanha, enquanto principal potência económica no seio da União, foi assumindo e conseguiu fazer impor a sua liderança, contando nesse propósito com o apoio manco da França de Sarkozy.

Ora, na dita versão Merkel, a liderança alemã tem sido orientada apenas para o que considera ser o seu interesse particular, indiferente aos interesses comunitários, com total desprezo pelas regras básicas de uma União Monetária e de uma Moeda Única, pelo que a eventual (e cada vez mais provável) desagregação da zona Euro irá ter fortes implicações negativas também sobre a própria Alemanha, como o referem insuspeitos estudos efectuados (UBS) antecipando já esse evento.

Se hoje parece claro que o descalabro a que se chegou poderia ter sido evitado caso a liderança alemã tivesse, no exercício do poder de que dispunha, actuado logo no início impedindo a escalada especulativa (que permitiu, é certo, a recapitalização da sua banca sem os apoios financeiros agora anunciados para outros sistemas), mais óbvio se torna ainda o desastre económico (para não falar do social) provocado pela alternativa da austeridade imposta na base da política do ‘cada um por si’ (ou do ‘salve-se quem puder’) e que ameaça alastrar em bola de neve ao conjunto dos países da zona Euro. Que ameaça mesmo a pretensa prosperidade de aço da própria Alemanha, uma vez que esta assenta basicamente no poder aquisitivo, cada vez mais atrofiado, dos restantes países europeus.

A Alemanha caminha assim para se tornar em vítima dela própria. O facto de dispor de poder e não o ter exercido no momento oportuno, não abona nada o seu propalado rigor e competência. Mesmo que o haja feito de forma deliberada visando propósitos que não lhe convém explicitar publicamente, o resultado observado no conjunto da UE – prolongada recessão económica (tornando cada vez mais difícil as condições de resolução das dívidas), contínua degradação social (destruição de postos de trabalho, redução de direitos essenciais,...) – parece demolidor sob qualquer prisma.

Independentemente das estratégias assumidas ou dos propósitos declarados, resta, no final, a percepção cada vez mais generalizada de que o objectivo último desta escalada é a destruição do Estado Social à sombra de cortes na despesa dita insustentável, a par da desvalorização do trabalho por conta da mais obsoleta versão da competitividade externa e do mirífico reforço das condições de atracção do investimento estrangeiro – sem que tenha conseguido resolver qualquer dos objectivos que se propunha, apenas tendo contribuído para acentuar as dificuldades da vida da maioria das pessoas e aumentar as desigualdades sociais, falando-se já num claro retrocesso civilizacional.