… perante o rapto da Europa!
Na análise crítica que fez ao seu
passado recente e onde desmontou, com números, a falácia oficial do Nirvana a
que teríamos chegado depois do Karma que foi (!) a austeridade dos últimos anos,
Vítor Bento partiu de uma classificação dos países do Euro entre deficitários e excedentários. Não se pretende aqui ir mais além do que utilizar
este exemplo recente para tentar arrumar o frenesim de comentários sobre o que cada um afirma ver na complexa situação grega, não deixando, contudo, de se adiantar que, por definição, qualquer classificação
da realidade é redutora, ela tem apenas a virtude de a traduzir através de
conceitos mais perceptíveis, por vezes simplificados (daí a redução), para dela
se poderem extrair consequências para o futuro. Por isso mesmo o pobre do Bento
passou a ser desancado, entre o desânimo e o despeito, pelos seus mais fiéis
correligionários de véspera, todos, enfim, desiludidos com a defecção
vergonhosa do seu mui venerado guru!
Acontece algo de semelhante agora
com os efeitos da tempestade (ainda não passou disso…) provocada pelas eleições
na Grécia e a sequência negocial que o novo governo grego decidiu empreender,
em conformidade com as promessas da campanha eleitoral. De repente todos os
que, por mérito ou por manifesta falta dele, têm acesso aos meios de comunicação
social, decidiram expor em público os seus estados de alma sobre este tema. Os
estados de alma revelam, mais que a realidade que é suposto pretenderem
traduzir, isso mesmo, o que vai na alma dos comentadores, expondo os seus mais
profundos anseios ou temidas apreensões projectados no futuro ou como ambicionados
triunfos ou como receados fracassos (conforme o ponto em que se situem).
A arrumação dos comentários sobre
as negociações que têm vindo a ter lugar sobre o futuro da austeridade na Grécia e na Europa – é isso que
sobretudo está em causa nas posições adoptadas – pode fazer-se,
para todos quantos manifestam estados de alma sobre este tema, entre rejubilosos e desanimados (ou apressados
e angustiados…), uns e outros demonstrando
padecer daquela perturbação que afecta tantos homens (sobretudo juvenis) na
hora das demonstrações viris. Nem sempre o que é precoce é bom e ser profeta
antes do tempo é privilégio apenas ao alcance de alguns. E este não é – não tem
sido – o caso dos comentadores domésticos, mais preocupados em se afirmarem, uns
como a melhor voz do dono, outros demasiado atreitos a prostrações e desgraças.
Quase sempre longe das exigências da realidade, todos perspectivando o futuro conforme
os seus desejos ou receios, todos sofrendo, enfim, da ansiedade que provoca a temida… ejaculação
precoce!
A direita austeritária, presa ao dogma do TINA e da tese do ‘termos
vivido acima das possibilidades’, dá já como certa a morte das pretensões
fantasiosas (o conto de crianças?) protagonizadas pelo Syriza, falta apenas
marcar as exéquias e o funeral (se possível com missa cantada, para exemplo de
quantos ainda alimentem veleidades). Nem esperam que o cadáver arrefeça, as
manifestações de júbilo são mais que evidentes, o comentário de Schauble no
final da sessão do Eurogrupo é apenas a expressão exemplar disso mesmo por se
tratar do dono da matilha. E até um comedido Paulo Baldaia – da emblemática TSF,
que de vez em quando perora na TV – folga por os gregos terem sido metidos na
ordem ‘quando confrontados com a
realidade’, ‘obrigados a recuar’
e a ‘meter na gaveta o principal das
promessas eleitorais’, pois a austeridade quando nasce é para todos. ‘Todos’,
aqui são os países, entidades abstractas, sem pessoas (nem divisões entre as
pessoas, claro), traduzidas em números, gráficos e estatísticas, enfim,
conceitos superiores só devidamente apreendidos por seres superiores para
manipulação junto dos simplórios consumidores
de notícias. À esquerda, entretanto,
é possível ver também que alguma dela tão pouco se encontra imune à dita perturbação
sexual/social, a avaliar (por exemplo) pelo apreensivo ‘desânimo’ que
transparece em alguns comentários recentes reproduzidos no Ladrões de Bicicletas, denotando um derrotismo que, é certo, os
tempos justificam, mas que se mostra no caso em apreço manifestamente
precipitado.
Este jogo, afinal, está longe de
ter acabado, na realidade ele ainda só agora começou. Do que até aqui se
passou, apenas é possível concluir que nada está ganho, mas também nada ainda
está perdido. Tudo neste processo se vai desenrolar a partir de agora, a fase
imediata a estender-se até ao final dos próximos 4 meses – o prazo alcançado
pela Grécia para o prolongamento do empréstimo – mas com continuação assegurada
muito para além desse prazo. Porque a maior vitória do Syriza, para já –
independentemente do que vier a acontecer com as propostas do governo grego
como contrapartida do empréstimo – foi ter permitido à raptada Europa pôr em
causa uma política tida até aqui como inevitável e sem alternativa. Ter obrigado
o directório alemão e seus podengos a aceitar discutir política ao invés de
formulações técnicas impostas como inquestionáveis sob as quais se acoitam os
desígnios de subjugação dos povos europeus aos esconsos interesses financeiros
mundiais! A construção europeia monolítica e a mando da Alemanha através da
austeridade sofreu o primeiro abalo, a passagem do nível técnico para o
político introduz uma dinâmica diferente e imprevisível, com avanços e recuos,
momentos de maior ou menor dramatismo, seguramente longe de funerais
antecipados ou foguetes antes da festa. Tudo, afinal, está ainda por decidir.
Bem pode agora a Maria Luís vir
dizer que na reunião do Eurogrupo apenas se pronunciou sobre ‘procedimentos a
cumprir’ para logo depois, do lado de onde ela menos esperaria – dos alemães,
pois claro – surgir a notícia das pressões exercidas sobre a… Alemanha (pois
claro), para que à Grécia fosse aplicado tratamento exemplar! Percebe-se o
desconforto: como proceder quem sempre aplicou uma política de austeridade com
o requinte e o cinismo conhecidos, perante uma eventual alternativa… à ‘tal’ austeridade inevitável? Bem tentaram
atirar o odioso da questão para os países do Báltico ou para outros que sobram
do ex-império russo do século passado, mas a verdade estava aqui mesmo, nos
caniches amestrados da Ibéria. Schauble já provou que não precisa que lhe
mordam as canelas para evidenciar tiques germânicos execráveis, mas com os
apoios oferecidos por tais biltres as suas pretensões de avançar para o Anschluss grego (para servir de
experimento aos demais países da UE) tornam-se bem mais fáceis de ser aceites,
pensará ele, perante as opiniões
públicas. Mas até aqui – sobretudo aqui, já se viu que pouco ou nada há a
esperar dos actuais governos europeus, incluindo os de cariz socialista – o
tiro ameaça sair-lhe pela culatra, pois é precisamente aí que se situa a
principal força que ameaça a hegemonia germânica! A Grécia constitui apenas um
primeiro passo para essa consciência – e um passo decisivo, importa destacá-lo!