quarta-feira, 4 de junho de 2014

A ‘revolução’ da propaganda liberal

Um dos aspectos mais cuidadosamente trabalhados pela metódica operação política de reimplantação do credo liberal na economia foi o da propaganda. Com a constituição da Societé Mont Pellerin, nos já longínquos idos 40, iniciou-se um processo de meticulosa arregimentação dos mais prosélitos fiéis do absolutismo do ‘mercado livre’, sobretudo no meio académico e no jornalismo, na expectativa de poderem actuar logo que a oportunidade surgisse – sempre através do ‘choque’ produzido seja por uma ditadura militar (como no Chile), seja, como agora, pela ditadura das dívidas (bem manipuladas pelas agências de rating), ou por qualquer outra crise grave (hiperinflação, terrorismo,...). Perante um certo descrédito do conservadorismo e a maior aceitação pública das ideias ditas progressistas, importava inverter o sentido das palavras, apropriar-se delas, pô-las ao serviço da difusão das ideias liberais. Garantir o êxito impunha não descurar nenhum pormenor, por ínfimo que pareça. 

Assim, na lenta e persistente preparação de todos os aspectos envolvendo tal operação, não pode considerar-se menor a tarefa de transmutação da terminologia política mais arreigada na opinião pública – e, por arrasto, dos conceitos sociais a ela subjacentes. A começar pelo termo ‘revolução’, agora apenas completo quando se disser ‘revolução liberal’. Não admira, pois, que ‘reaccionário’ passe então a qualificar alguém que se oponha às ‘reformas’ adoptadas no âmbito da... ‘revolução liberal’! O anátema de ‘retrógrado’ e ‘conservador’ abate-se sobre todos os que se não identificam com a nova ordem liberal, liberal torna-se sinónimo de liberdade, a liberdade exige ‘liberdade económica’, e esta é inseparável do seu santuário, o ‘mercado livre’. Aliás, a nota mais distintiva (e bem sintomática) destes espécimes é mesmo serem liberais na economia, mas o mais conservadores nos costumes.

Toda esta fraseologia encontra sequência lógica na nova designação dada aos capitalistas, agora exaltantemente intitulados ‘empreendedores’, dotados de ‘espírito de iniciativa’, ‘ambiciosos’, cultivando o ‘gosto pelo risco’. O ‘lucro’ passa a ‘criação de valor’, o ‘salário’ transforma-se em ‘custo do trabalho’, os ‘despedimentos’ são o resultado de ‘planos de saneamento das empresas’, em última análise, de ‘salvação de empregos’! Pior que tudo e já sem qualquer pudor nem fingimento, a ‘segurança social’ vai-se gradualmente transmutando em... ‘assistência social’!

Mas a grande transformação, essa vai-se processando ao nível dos valores e da cultura: apenas importa o sucesso sem olhar aos meios. E se logo à cabeça surge o primado atribuído ao indivíduo sobre a colectividade – que arrasta o da competição sobre a colaboração – não pode deixar de se referir também o da ambição sobre a abnegação, a arrogância sobre a modéstia, o egoísmo sobre o altruísmo, a ganância sobre a solidariedade, a habilidade manhosa sobre a competência e o mérito, o logro sobre a lealdade, o cinismo sobre a verdade... No final vingará a impunidade sobre a justiça. É todo o ambiente em que interagem as relações sociais que é objecto de intenso bombardeamento mediático no sentido da sua transformação – dizem que no sentido do empreendedorismo, da livre iniciativa, da competição sem limites... – a base em que se pretende assentar a construção desse Admirável Mundo Novo!

O resultado desta inversão de valores, desta subversão de conceitos, observa-se a cada passo. Recentemente foram divulgados dados preliminares de um vasto estudo do CES/Centro de Estudos Sociais (da Univ. de Coimbra) sobre ética e fraude académica em meio universitário, revelando que os alunos mais propensos a copiar são masculinos, do ensino privado, têm médias mais baixas, pais com maior grau de escolaridade e de rendimentos mais elevados. Na lógica dos dados apurados, o comentário televisivo de um dos autores identificou uma cultura de tolerância à fraude reveladora dos padrões éticos adoptados na conduta profissional de algumas das nossas elites (de onde tais alunos maioritariamente provêm), destacando uma dupla vertente: recurso à fraude e à corrupção para se atingirem objectivos, incompetência e fraco nível de exigência nos seus desempenhos. Nenhuma novidade, aliás, se atentarmos nos indicadores comparados da produtividade face ao esforço aplicado, tendo em conta os valores dominantes que nos vão sendo impostos – e a pouco e pouco absorvidos.

Todo este edifício propagandístico converge para a cúpula que se resume no famoso TINA de Thatcher. ‘Não há alternativa’ – síntese ideológica de toda a propaganda liberal – pretende ser um nó cego na vida das pessoas, uma determinação política anti-democrática a amarrar a realidade, a condicionar a sua evolução. Ao serviço da versão mais radical de um modelo económico que, ‘entregue’ ao arbítrio de forças cegas, está a exercer uma insuportável pressão sobre os recursos limitados do planeta. Até onde (ou quando), porém, a realidade se deixará manietar por essa utopia liberal que – já poucas dúvidas subsistem – conduzirá ao inevitável esgotamento desses recursos mais depressa do que se imagina? Até onde, pois, a propaganda resistirá (ou se irá impor) à realidade?