sexta-feira, 23 de maio de 2014

A Contra-Reforma liberal em marcha...

...e a 'utilidade' da crise na consciência política

Por mais que o tema tenha deliberadamente sido ‘apagado’ da campanha eleitoral, a grande linha divisória nestas eleições europeias passa pelo Tratado Orçamental/TO (de inspiração germânica): ou se é pró ou se é contra a manutenção da austeridade nele instituída! Da austeridade ‘tout court’, porque embora não sendo a mesma coisa sofrer os efeitos de uma ‘austeridade leve’ ao jeito do que pretende o PS, ou os de uma ‘austeridade dura’ como a aplicada pelo actual Governo de direita (ainda que com objectivos políticos mais amplos dos que os proclamados), o certo é que, no final, o resultado não será muito diferente: a destruição deste anémico e ainda muito embrionário Estado Social (na comparação com outros mais evoluídos), considerado insustentável e por isso objecto de inevitáveis reformas. Como as que se encontram em curso, desenvolvidas pela coligação no poder, paladina e cultora da ‘terapia do choque’ provocada pela política desta ‘austeridade dura’.

Contudo, essas pretensas reformas que o actual Governo neoliberal diz estar a empreender, afinal reduzem-se à destruição, mais ou menos profunda, mais ou menos acelerada (assim as condições sociais o permitam), do Estado Social erguido no pós 25 Abril, em especial nos domínios da educação, saúde e segurança social, ao desmantelamento das leis laborais e outras reformas sociais de reconhecido impacto positivo na vida das pessoas. Em bom rigor, pois, ao que se assiste hoje é a um monumental movimento político de contra-reforma, de cariz tão religioso e fanatizado como o empreendido pela Igreja de Roma quando Lutero e outros reformistas tentaram a inglória renovação do cristianismo do séc. XVI. O capitalismo liberal (na sua actual versão neo), depois do susto da crise financeira de 2008, soube recuperar a iniciativa política e reconstituir a imensa massa de recursos volatilizada pelo rebentamento da bolha especulativa, à custa da mais gigantesca e ignominiosa transferência histórica de valor do trabalho para o capital.

Depois de punirem as pessoas cortando salários e pensões, de proibirem os sonhos dos jovens obrigando centenas de milhares a emigrar, de violarem todos os contratos pessoais em nome do respeito (ou antes, ‘respeitinho’!) pelos contraídos com o capital, de subjugarem a política (a vida das pessoas) à completa dependência de esconsos mercados (formalizada com a aprovação do TO), de, no final, fragilizarem ainda mais um país já frágil e empobrecerem ainda mais as suas já pobres gentes; depois de utilizarem a mentira como táctica, de infantilizarem os destinatários do discurso político como estratégia de comunicação, de recorrerem, enfim, a todos os expedientes para instalarem o seu 'Admirável Mundo Novo’ (!!!); em suma, depois de desregularem, privatizarem e arruinarem o Estado Social (a mesmíssima receita dos ‘Chicago boys’ aplicada desde o Chile de Pinochet), a estratégia eleitoral desta direita ultraliberal (suportada no essencial, é bom acrescentar, por ‘este’ PS – e o essencial, reafirme-se, está no TO) centra-se agora em demonstrar que esse quimérico objectivo afinal é alcançável e que tudo isso era indispensável para se meter o país (e as pessoas desse país) na ‘ordem’ – depois da ‘desordem’  que foi o desgoverno do ‘alternante’ PS !

Certo é que a tese do ‘não há alternativa’ à política da austeridade encontra uma boa dose do seu sustento na posição dúbia do PS. Percebe-se a posição da direita no poder: submissão total aos credores externos mesmo que isso implique a destruição do País. Percebe-se a posição dos partidos mais à esquerda (PCP e BE, e outros sem expressão parlamentar): reestruturação da dívida (implicando prazos, taxas e montantes), ainda que isso possa vir a implicar retaliação internacional e uma quase provável saída do Euro. Difícil é entender a posição deste PS, para além da crítica emparceirada com a esquerda de uns, do quase alinhamento com a posição do Governo de direita por parte de outros, do centrismo um pouco ao sabor das conveniências da sua actual liderança.

Esta alternância sem alternativas é a principal responsável pelo crescente descrédito da política, bem expresso na cada vez mais elevada abstenção. É manifesto o incómodo desta situação para o ‘status quo’ do sistema, na medida em que tal evolução traduza o protesto de uma maior consciência das pessoas nas deficiências do actual modelo democrático e as induza a procurar alternativas políticas reais – para além das formais alternâncias partidárias – dentro ou fora do sistema. Com os partidos da alternância (o denominado arco da governação) instalados no poder (‘à vez’, mas preparam-se para o fazer ‘em conjunto’, no bloco central), com o PC instalado/entrincheirado no seu inexpugnável reduto partidário (à maneira dos indefectíveis gauleses, parecendo satisfeito se obtiver 3 dos 751 deputados em disputa!), uma política de esquerda deveria concentrar-se, através de longo e persistente trabalho pedagógico, no essencial: na recusa do TO e na defesa do Estado Social, o que implica assumir, com todas as consequências, a reestruturação da dívida. No actual contexto europeu esta surge como a alternativa inadiável à austeridade permanente – em oposição à sádica pantomina desta Contra-Reforma liberal sobre a vida das pessoas!

terça-feira, 13 de maio de 2014

A ‘nova’ sociedade liberal em construção

Ao longo das últimas décadas tem vindo a observar-se uma alteração radical na organização social, cada vez mais perceptível na sua base ideológica neoliberal, cujas consequências são ainda difíceis de avaliar na globalidade. Por trás do reforço, até ao paroxismo, das principais tendências gerais que melhor identificam e caracterizam este sistema capitalista – concentração da riqueza, com o consequente aumento das desigualdades sociais; apropriação privada dos incrementos da produtividade social, com a redução do valor do trabalho e o disparar do desemprego – detecta-se o exacerbar do individualismo, com tradução social no princípio do ‘cada um por si’, prolongado na máxima do ‘salve-se quem puder’.

O resultado mais visível deste projecto ideológico expressa-se na desaceleração do crescimento económico (em queda desde os anos 70), pelo efeito em cadeia da destruição de empregos provocada pela automação, baixa de salários e diminuição da procura (que o aumento das desigualdades tende a acentuar). Prolonga-se na crescente ameaça à segurança dos indivíduos, hoje representada pela estabilidade no emprego (tal como antes o fora a propriedade, tornada um direito pela Revolução Francesa, nos primórdios do sistema). Ao mesmo tempo as empresas ganham cada vez mais autonomia face ao espaço nacional, sobre as quais os governos já não têm controle. E a divergência estabelece-se como norma da UE – contrariando o seu propósito estatutário da convergência das economias!

Para onde todos estes aspectos convergem é na criação de um espaço social radicalmente diferente do nosso (ainda) actual modo de vida. Não obstante tudo ser por enquanto muito impreciso, é possível sinalizar algumas das tendências mais impressivas e essenciais para a vida das pessoas que melhor individualizam este domínio da ideologia neoliberal:

1.      Alternância sem alternativas – a lenta agonia da democracia

Desde que, nos idos 80, o TINA de Thatcher iniciou o seu percurso político, a democracia tem vindo a encolher, corre mesmo o risco de morrer à míngua (por falta de conteúdo). Não havendo lugar a alternativas, o espaço democrático reduz-se a pouco mais que o mero formalismo do voto periódico e a escassos simulacros de liberdade. Em seu lugar têm vindo a impor-se, com o peso de explicações económicas pseudo-científicas, soluções ditas técnicas – supostamente neutras e isentas face às políticas, por natureza ‘contaminadas’ por opções de facção. Registe-se, neste processo de desvalorização da política, o papel cúmplice da social-democracia, o que determinou já a sua própria inutilidade enquanto alternativa ideológica ao neoliberalismo, conduzindo ao seu progressivo (e porventura definitivo) definhamento. 
  

2.      Too big to fail – a crescente autonomia das empresas confronta a crescente dependência dos Estados

Esta crise consumou o domínio absoluto do poder financeiro global. Prova disso a demonstração real e cabal do teorizado ‘risco moral’. Perante a ameaça de falência de instituições tidas como demasiado grandes para não comprometerem a estabilidade do sistema, o poder político viu-se coagido a desencadear acções de apoio ao sistema financeiro, suportado pelos contribuintes através dos famigerados ‘planos de austeridade’. Mas enquanto os bancos foram considerados grandes demais para soçobrar, por receio de contágio sobre as restantes estruturas sociais, os Estados são equiparados a meras empresas descartáveis e empurrados para a situação de bancarrota, como forma de pressão para aceitação de todas as imposições e extorsões.

3.      Uma sociedade de ‘gangs’ –  a organização social baseada no princípio do ‘cada um por si’

À medida que se acumulam os indícios de cada um estar por sua conta e risco, aumenta assustadoramente a sensação de insegurança, o ‘outro’ – qualquer outro – passa a constituir um potencial inimigo e é encarado com desconfiança. Este ambiente social propicia a difusão de redes de contactos e de influências, favorece o espírito corporativo e os grupos de interesses. Com o individualismo e o isolamento, cresce a guetização da sociedade, proliferam os ‘gangs’, os únicos que transmitem aos que os integram alguma segurança. ‘Gangs’ sociais, políticos, económicos (como o 'pioneiro' BPN),... A regressão social instala-se, a cultura retorna à lei da selva!

4.      A infantilização das opiniões públicas  – uma narrativa sobre a ‘crise’ para consumo de imbecis

Contra todas as evidências (incluindo concludentes relatos de insuspeitos protagonistas: ver Público deste domingo, 11Maio14), o discurso oficial continua a insistir na estratégia comunicacional de uma explicação infantilizada da crise, repartida por duas partes: na primeira, ‘o mau da fita’ – o Governo anterior – aparece como único responsável pela crise que levou à troika; na segunda, ‘o bom da história’ – o Governo actual – ergue-se como grande arquitecto da (imposta) saída limpa! A crise financeira de 2008 nunca existiu (assim o afirma, aliás, um dos gurus desta escola, o nobelizado Fama, em nome da sacrossanta eficiência dos mercados!), Grécia, Itália, Espanha, França, a própria Alemanha,... nunca tiveram problemas nos seus eficientes sistemas bancários. Tão eficientes que souberam impor, através de prestáveis serventuários políticos, a mais colossal extorsão de recursos do trabalho para a... Banca dos países no centro do poder. Assim como também nada teve a ver com o desfecho (provisório) desta história, a alteração do papel do BCE, o excesso de liquidez nos mercados de capitais, o risco de deflação na UE, a evolução (também positiva) das taxas nos restantes países - tudo acontece por mero acaso!


Sem se pretender exaustiva (longe até de o ser), esta lista, contudo, é já suficientemente elucidativa das transformações sociais em curso por via do actual domínio neoliberal. Não é seguramente este o modelo de sociedade a que a maioria aspira ou idealizou. Mas é esta a sociedade que parece estar a nascer, a pretexto da resolução da crise financeira. Quando esta rebentou, alimentou-se a ideia de algo poder vir a mudar no rumo regressivo que já então era claro. A crise das dívidas que lhe sucedeu repôs o rumo anterior, a ritmo ainda mais intenso. Com bem graves consequências: a pressão sobre os recursos que resulta do exacerbado espírito competitivo instituído como regra universal e absoluta, terá como inevitável desfecho, a breve prazo, o seu esgotamento – às agora dívidas insustentáveis, irá suceder um planeta insustentável ? – e outras crises se perfilam já no horizonte. Com saídas imprevistas nada tranquilizadoras.