Nos últimos anos, boa parte dos
portugueses não viveu. Apenas sobreviveu para a... ‘dívida’. Foi-lhe
retirada a possibilidade de ter vida própria, de decidir sobre o presente, de
ter um passado, de planear um futuro. Ora, este enorme confisco da realidade, foi executado em nome de uma abstracção
– a dívida – transformada na única realidade que conta na
vida das pessoas! Abstracção fraudulenta, acrescente-se, pois quem é
chamado a pagar essa dívida não é, em rigor, quem a contraiu. É bom
relembrar que quase 2/3 dos portugueses não tinha, à data da criação do
‘problema’, qualquer responsabilidade junto da Banca – onde se situa a verdadeira origem da ‘dívida’
– o que desde logo suscita a questão da sua legitimidade, senão mesmo a da sua
legalidade. Mas não é disso que aqui se pretende falar agora.
Passados três longos e penosos
anos de uma política alienada da vida real das pessoas, a obsessão
pela ‘dívida’ – e a austeridade imposta a pretexto – tiveram como
principais resultados (esperados, pois meticulosamente planeados), de um lado a
redução do valor do trabalho, do outro a maior concentração da
riqueza. Era suposto – o discurso oficial assim o proclamava – que daí
adviesse uma economia mais ágil, eficiente e robusta. Que o emprego gerado por
tal economia absorvesse os desocupados, que a retoma económica e a maior
riqueza produzida propiciasse ao Estado, através dos proventos fiscais e de
menores gastos sociais, não só atingir o famigerado propósito da redução do
déficit das contas públicas e do equilíbrio orçamental, mas igualmente o
ensejo, anunciado mas sempre adiado, de finalmente vir a repor os temporários
(foi assim que foram ‘vendidos’!) cortes de rendimentos e a desagravar
impostos.
Nada disto, porém, aconteceu ou
está sequer em vias de vir a realizar-se. À parte as proclamações do regime (e
dos seus arautos fiéis) de um milagre económico ao virar da esquina, a
realidade teima em desapontá-los: ausência de investimento (ou de intenções de
investir) de dimensão capaz, fecho de empresas (e previsão de novas falências),
agravamento do crédito mal-parado (indicador seguro do estado da economia),
persistência do elevado desemprego (sobretudo jovem), anúncio de novos cortes e
taxas, de provisória a austeridade passa a permanente...
Renova-se o ciclo infernal da desgraça em torno da dívida, generaliza-se
a discussão sobre as alternativas, começa a admitir-se que estas possam até ser
credíveis (não o eram antes mais em função de quem as defendia, do que do seu
valor intrínseco).
Discretamente, com os olhos postos na reacção dos
mercados, o regime aguarda, sôfrego, que na hora certa – que só o será quando
ficar completo o actual processo de transferência de valor do trabalho para o
capital – a Europa decida aliviar as regras que garrotam a carga da dívida.
Sobretudo através de alterações ao papel do BCE, alguma forma de
mutualização,... desde que se não ponha em causa a única actual garantia de
sustentabilidade da Banca, a instituída sangria de recursos públicos destinada
a financiar o diferencial bancário de juros entre os pagos ao BCE e os cobrados
ao Estado!
Enquanto isso, a par do cinismo que rodeia a justificação
da passagem das medidas ditas temporárias a permanentes (que ultrapassa tudo o
que de mais desonesto teve este processo, das falsas promessas à mentira como
sistema de governo), há palavras declaradas malditas por receio de se irritar a
volúvel sensibilidade dos mercados! Mas por trás do aparente prurido em falar
de ‘reestruturação’ – e da recusa em alterar a política da austeridade –
perfilam-se objectivos que vão muito para além de uma simples patologia
centrada na obsessão da dívida. Na espúria dicotomia, por vezes
esgrimida, entre
responsabilidade e solidariedade (como se de conceitos antagónicos se tratasse!), oculta-se o propósito ‘thatcheriano’ de uma mudança
‘cultural’ da mentalidade no sentido do individualismo extremo, de
quem olha para a sociedade como a simples soma dos indivíduos que a constituem,
não havendo lugar a considerações de natureza social ou comunitária,
ignorando-se a própria cultura. Pretende-se substituir a solidariedade
social (princípio constituinte do Estado Social) pela responsabilidade
individual (o invocado imperativo moral para obrigar a pagar a dívida),
determina-se que cada indivíduo apenas conte consigo próprio. Institui-se a lei
da selva contra a inclusão/coesão social!
Talvez isso explique, pelo menos
em parte, alguma da passividade de que se acusa o povo português
perante as malfeitorias de que tem sido objecto ao longo destes três últimos
anos. O discurso oficial, bem apoiado por intensa barragem mediática, acentua a
ideia de cada um estar entregue à sua própria sorte. É natural que, em ambiente
onde impera e cresce a lei da selva, se encare com desconfiança a cooperação, a
associação, a acção política (partidária ou não). Ou ainda como o exemplar caso
BPN (que se arrasta nos Tribunais até à sua provável prescrição e, quando
oportuno, ressuscita, como agora por um medíocre, mas serviçal, mestre de
cerimónias) foi e é bem utilizado (por outra figura tão medíocre como a anterior)
para demonstrar a responsabilidade do regulador ignorando a do transgressor,
para se concluir que as supostas ‘falhas do sistema’ cabem, em primeiro lugar,
aos serviços públicos, quase ilibando as fraudes cometidas pelos privados,
neste caso, não por acaso, pel‘os amigos de Cavaco’!
Este culto do indivíduo desenvolve-se, de algum modo, contra o
progresso civilizacional obtido no último século. Ao arrepio da cultura, contra a vida.
Contribuindo para desarmar a resistência a todas as investidas de uma frente,
que se afirma liberal, apostada em destruir a força da solidariedade. É por
isso que a denúncia da defesa corporativa dos interesses, em prol de uma
exigida, mas cada vez mais ameaçada, solidariedade intercorporativa
(e, se possível, internacional) – contra, por exemplo, os que consideram
que a luta da Função Pública ou dos Reformados e Pensionistas (os novos
judeus?) se restringe apenas aos nela implicados – assume tanto relevo no
actual contexto político, pois o que atinge hoje alguns, amanhã irá tocar aos
restantes. E explica como, ao pôr em causa a obsessão da dívida, a reestruturação,
seja ela qual for, se tornou proscrita do léxico político. De uma certa
política, claro, que utiliza a dívida – e a ela amarra a vida
das pessoas! – para atingir outros propósitos, selectivos e bem exclusivistas.