Já o afirmei antes, a actual
crise e a austeridade curativa – punitiva! – que a facção no poder tem vindo a
impor para a debelar, teve pelo menos o mérito de tornar claro, até de
escancarar, os reais objectivos que animam, por agora, o embuste liberal. Sob o
propósito de reduzir o Estado (a tese do Estado mínimo e tecnocrático),
o que essa corja pretende mesmo é reduzir a Democracia (a tese da
democracia limitada), eliminar obstáculos ao exercício do poder pelos mercados.
Todas as teses invocadas para impor a austeridade – desde o ‘termos vivido
acima das nossas possibilidades’ ao famoso TINA do ‘não há alternativa’
– convergem para a invocada inevitabilidade de medidas que têm em comum
restringir direitos democráticos, mas mantendo inalterável o peso do Estado.
Sem o explicitar abertamente –
não tardarão muito a fazê-lo! – a concepção ideológica base por trás desta
construção social foi bem resumida por um dos gurus emergentes ao longo desta
desgraçada experiência política, o Secretário de Estado dos Assuntos Europeus,
Bruno Maçães – o tal que ficou conhecido na Grécia como ‘o alemão’, ao recusar
uma frente europeia do Sul com vista, nomeadamente, a uma maior convergência
fiscal na zona Euro. Na opinião deste espécime, expressa em entrevista à SICN
de 29/Jan. último, as reformas estruturais (!) que o governo tem vindo a
empreender visam reforçar a ‘combinação virtuosa entre Estado e Mercado.
Deixamos o Mercado funcionar, mas onde ele não funciona bem, corrigimos’ –
aí intervém o Estado.
A defesa deste raciocínio simplista não é meramente
académica – como benevolamente tal posição foi etiquetada, em Atenas – tão
pouco inocente. O Estado é apresentado desprovido de qualificativos, um poder
neutro, mero instrumento técnico, orçamental, funcionando à margem das opções
democráticas – o Estado tecnocrático. Deste modo, não só admite a sua
total subordinação aos poderes fácticos dominantes na sociedade – e sabe-se bem
onde é que eles residem nas sociedades capitalistas! – como expressa toda uma
filosofia de actuação política decorrente de tal posicionamento teórico. Nesta
perspectiva, o Estado corrige quando reforça a acção dos mercados, seja ela
qual for – como exemplarmente aconteceu na crise financeira de 2008, com
a Banca a ser salva ‘in extremis’ pelos governos democráticos! Em última
análise, na visão liberal tecnocrática, o valor da democracia mede-se
pela sua capacidade em potenciar o valor de mercado!
Tal como aparece expresso num
título recente – Tempo Comprado – do alemão Wolfgang Streeck (com
o sugestivo subtítulo ‘A crise adiada do Capitalismo Democrático’):
‘Seguir o caminho dos últimos cerca de quarenta anos levará (...) a uma tentativa
de libertação definitiva da economia capitalista e dos seus mercados,
não dos Estados – uma vez que os primeiros continuarão a ser dependentes
da protecção dos últimos em muitos aspectos –, mas da democracia,
enquanto democracia de massas, de acordo com a forma que esta assumia no regime
do capitalismo democrático. (...) A utopia da gestão actual da crise também
consiste na conclusão – por meios políticos – da já muito avançada
despolitização da economia política, cimentada em Estados nacionais
reorganizados sob o controlo de uma diplomacia governamental e financeira internacional
isolada da participação democrática, com uma população que, nos longos anos
de uma reeducação hegemónica, teve de aprender a considerar justos ou sem
alternativa os resultados de distribuição dos mercados entregues a si próprios
(sublinhados meus).’
Importa aqui aludir ao papel
cúmplice da social-democracia europeia, agora que já se fazem ouvir algumas
críticas vindas mesmo do seu interior, nesse processo de reeducação para a
subordinação às decisões dos mercados soberanos. A própria maioria neoliberal
se encarrega de o recordar com frequência, temendo um inusitado arrependimento
de quem até aqui se mostrou tão fiel servidor de propósitos que lhes são
comuns. E se não alimentam há muito qualquer expectativa na recuperação dos
‘casos perdidos’ da denominada (na sua fraseologia mais moderada) ‘esquerda
radical’, não se coíbem de lançar avisos e até ameaças à ‘esquerda
recuperável’, a que se engloba no PS dos bons e leais serviços ao sistema –
acusado agora, por isso mesmo, de ser o responsável pela crise financeira,
omitindo, é certo, com enorme descaramento e desonestidade, as suas próprias
culpas, como suporte ideológico do que realmente a precipitou, a liberalização e financeirização da economia!
Acusam-no ainda de não comparecer, dobrado a preceito, aos já iniciados
festejos da decretada recuperação económica, de não querer ver aquilo que,
afinal, só eles ainda conseguem ver: melhorias no deprimente panorama económico
– sem se atreverem, por enquanto, a falar de melhorias no panorama social, embora
a manipulação das taxas em torno do emprego/desemprego tenha já começado em
força! A consciência do papel charneira que cabe à social-democracia – ao PS –
nesta emergência, se historicamente permite temer o pior, não pode excluir a
esperança por ténue que seja!