Ao longo dos últimos 30 anos, sob impulso da onda liberalizadora pacientemente
preparada em ‘think tanks’ como a Société Mont Pèlerin (de Hayek e Friedman) e
à medida que a desregulação liberal
tinha lugar, o sistema financeiro foi-se impondo a todas as áreas sociais,
consolidando um modo de vida substancialmente diferente dos 30 precedentes (os
’30 gloriosos anos’ do compromisso keynesiano e da criação do Estado Social – erguido
para enfrentar a ameaça comunista!). Perante a crescente mobilidade do capital
proporcionada pela gradual desregulação financeira – conduzindo à repressão
salarial nos países do centro desenvolvido, sob pressão da deslocalização sem
freios das actividades produtivas em busca de custos laborais mínimos – o
sistema, para respirar e poder subsistir, socorreu-se do expediente do crédito
barato, levando ao endividamento das pessoas, das empresas e, no fim, dos
Estados. Como era previsível, no termo de inúmeras crises mais ou menos
localizadas, o sistema viu-se confrontado com uma Crise Global de proporções nunca antes atingida, iniciada com a ‘crise do sub-prime’ nos EUA, seguida da
denominada ‘crise das dívidas soberanas’
na UE.
A desregulação financeira proporcionou o surgimento de uma
nova ‘ciência oculta’ (literalmente), a assim designada ‘engenharia financeira’
dos derivados, cujo objecto é tornar tão opaco o ‘produto financeiro’ daí
resultante que ninguém, nem os seus próprios autores, lhe conseguem acompanhar
o rasto. Os resultados, porém, não podiam ser mais animadores para os seus
fautores: enquanto a generalidade dos pequenos aforradores se vê compelida, por ausência de alternativa,
a subscrever tais produtos como forma de proteger da depreciação as suas
poupanças, a actividade gera uma enorme ‘bolha especulativa’, fonte de inesgotáveis
rendimentos para as classes financeiras. Os BPN, BPP e BES são apenas episódios
domésticos (nem sequer os mais expressivos) de uma história trágica que submergiu
milhões na miséria um pouco por toda a parte.
Mas nem os comprovados efeitos desastrosos de tamanha
arteirice parecem suficientes para abalar a firmeza das estruturas financeiras,
cujo domínio afronta o poder político, suposto supervisor do poder económico –
mas que, por opção ideológica, se afirma alheado das ‘espontâneas (!) decisões do mercado livre’. Certo é que as práticas
responsáveis pela hecatombe financeira se mantêm intactas e incólumes perante a
lei. Como no caso do Morgan Stanley que se permite fazer o que bem entende (uma
das últimas, a nota atribuída à PT – de quem é accionista – em suposto
benefício dos seus eventuais compradores, entre eles a francesa Altice – de
quem é assessora!), sem oposição legal efectiva ou comoção ética séria, apenas
a pretensa crítica que se vislumbra por trás de uns poucos esgares resignados. Não
deixa, pois, de surpreender (pelo seu ineditismo), se bem que revelador da teia
instalada, o recente aviso do FED aos
bancos americanos de que terão de mudar
as suas práticas profissionais, caso contrário correm o risco de ser
desmantelados (?) – só nos últimos 6 anos os principais bancos dos EUA pagaram
mais de 100mM$ em multas por falhas éticas e atropelos à lei!
É esta mesma engenharia financeira que colocou o mundo na
crise em que se encontra, que explica mais essa habilidosa artimanha deste
governo que dá pelo nome de ‘crédito fiscal’. Concebida com o
mesmo toque de génio, porventura até na mesma fábrica de sonhos liberal, com que foi parida a ‘exemplar solução’
que, à altura e perante aturdidos incautos, pareceu constituir o esquema de ‘resolução’
com que se pretendeu salvar os cacos do esfacelado BES. Sem molestar os
contribuintes, afiançava-se. Logo então se percebeu (e por aqui ficou exarado)
a fraude escondida nesse esquema manhoso e que, pouco a pouco, tem vindo a ser
descoberto e denunciado. Mas não deixou de proporcionar aos seus promotores
desmedidos encómios pela ousada inovação e de constituir então motivo de grande
regozijo político por confronto com o fracasso de exemplos passados similares
(BPN). Volvidos dois meses sobre tal achado, o desastre de antanho ameaça agora
multiplicar-se e vir a desabar sobre os contribuintes, directamente ou por via da
banca ‘obrigada’ a pagar os desmandos. Em contrapartida, os efeitos práticos do
crédito fiscal parecem esgotar-se ‘tão
só’ na propaganda política – ‘pormenor’ ainda assim, indispensável para se garantir
pessoas resignadas e contenção social.
O
governo, protegido (ou escondido) pelo ‘escudo de ferro’ a que se prestam os
parlamentares da maioria, prossegue, imune à crítica e às tragédias provocadas
pela sua política, a missão que se propôs de transformar o país de acordo com
os princípios do fanatismo ideológico que o consome, custe o que custar!
E o mais rápido possível, por forma a aproveitar a ‘boa onda’ gerada pela crise que, conforme as ‘boas práticas’ expostas no manual da ‘terapia do choque’, eles
próprios ajudaram a incentivar. A conjugação da economia para os especialistas
com a terapia do choque explicam, em boa medida, o que tolhe as
pessoas e as impede de agir, num misto de ignorância
e de medo!
2 comentários:
A austeridade não foi inútil para os que se tornaram e mativeram milionários, constem ou não das listagens da Forbes e da Exame !
Sem dúvida, Vítor, a austeridade só é ‘inútil’ (e mesmo prejudicial) para a maioria das pessoas, para o país em geral e até para os propósitos proclamados pelos seus fautores (redução do défice, da dívida,…), porque foi – e é – muito ‘útil’ aos interesses de uns poucos e serve bem os seus objectivos não confessados (que nem eles se atrevem a admitir: colossal saque de rendimentos, destruição do Estado Social,…). Não me canso de o repetir: a cartilha aqui seguida está bem expressa e documentada (com todos os casos similares) nesse impressionante relato da Naomi Klein, ‘A Doutrina do Choque’, que toda a gente devia ler para ver como tudo isto estava previsto há muito (o livro foi lançado em 2007 e tudo o que aqui se passou está lá!).
Não resisto a citar, a propósito, o que o treinador do Nacional, Manuel Machado, referiu na preparação do jogo com o Porto, realizado ontem, sobre a importância que os ‘media’ dão aos clubes ditos pequenos apenas e só quando jogam com os grandes: “… este país, de facto, está ferido dessa tendência para toda a gente se juntar ao que é grande. E é por isso que continuamos a ser o que somos. Os Loureiros, os Azevedos, os Amorins e outros, ou seja meia dúzia de “águias” continuem a comer dez milhões de patos. Eu não participo nisso. Posso ter consciência de que sou pato mas em nenhum momento vou contribuir para que essa meia dúzia de águias continue a governar este país da forma como governa. (…)”.
Há já, de facto, cada vez mais gente a ‘falar alto’ sobre o que nos está a acontecer. Mas falta depois transpor ainda o nível seguinte: elevar essa consciência, passar aos actos. De algum modo – para além da denúncia, mais uma vez, do que se passa no sistema financeiro – também foi isso que tentei dizer no texto (de uma forma algo embrulhada, talvez), ao falar da dificuldade de se passar da acomodação à acção.
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