quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Eu, se fosse alemão...


Não há prédica nem altercação sobre a omnipresente ‘crise das dívidas’ em que não apareça o já habitual ‘eu, se fosse alemão,...’ condescendente e até compreensivo para a posição de domínio político que a Alemanha tem vindo a exercer na gestão da Crise, tirando partido da sua actual preponderância económica. As exigências alemãs para os denominados apoios financeiros aos países mais endividados, implicando doses maciças de austeridade, são invariavelmente enquadradas, como justificação para a sua 'inevitável' - e resignada - aceitação, por essa estranha litania: 'eu, se fosse alemão, também não gostaria de ver os meus impostos canalizados para pagar os gastos de países pouco zelosos (no mínimo) com a gestão dos seus recursos, gastadores compulsivos, viciados em crédito’. Daí até concordarem com a política de punição aos ‘indisciplinados do Sul’...

Mas ‘eu, se fosse alemão,...’ começaria antes por tentar compreender a razão essencial da actual prosperidade da Alemanha. Não as obtidas por via de explicações de cariz nacionalista ou de índole psicológica, ligadas a pretensas características ou propensões étnicas, geográficas, ou até comportamentais (disciplina, rigor,...). O certo é que nem sempre os alemães (ou os povos e regiões que os constituem) foram um país próspero e as estatísticas evidenciam que só a partir da segunda metade do Séc. XIX, em pleno ascenso do capitalismo, com a unificação prussiana e a gestão de Bismarck, foi possível primeiro criar um grande espaço económico nacional adequado às exigências desse então ainda embrionário sistema e depois partir para o expansionismo germânico que envenenou a História da Europa (e do Mundo) ao longo de todo o Séc. XX.

Tenderia, portanto, a procurar explicações mais abrangentes e bem mais profundas, não me fixando apenas no tempo presente e no espaço limitado de um país. E essas só são possíveis de descobrir – para quem as quiser mesmo procurar – na forma e conteúdo desta globalização económica, em que uns tiram mais partido do que outros, porque o sistema que a comanda assim o determina.

‘Eu, se fosse alemão’, teria então bem mais em conta o passado e o futuro, mais até que o efémero presente: o passado para me explicar como é que a Alemanha atingiu a sua actual posição de domínio; o futuro, para perceber que, sendo essa posição sobretudo o resultado das interligações económicas do mundo de hoje, se encontra cada vez mais dependente de outros e do que nestes ocorrer, que a incerteza (e, consequentemente, a volatilidade) é a nota dominante das dinâmicas deste sistema.

Eu, se fosse alemão’, recordaria, pois e antes de mais, os vários momentos da História do séc. XX em que a Alemanha teve de equilibrar as suas contas (à custa de injecções maciças de capital norte-americano e do crédito de outros países, entre eles... a Grécia) e a forma como suspendeu o pagamento (!) de dívidas astronómicas, suportadas por grandes e pequenos países credores: cancelamento dos empréstimos contraídos para pagar as reparações de guerra impostas pelo paz de Versalhes, compensações pelo trabalho escravo do nazismo, indemnizações devidas pela ocupação alemã,... 

Eu, se fosse alemão’, ver-me-ia obrigado a aceitar que o facto de estar, hoje, aqui, alardeando prosperidade, se deve em grande medida ao modelo de integração europeia e desta construção do Euro, no quadro de relações económicas com um padrão competitivo onde os países tecnicamente mais desenvolvidos naturalmente dominam, mas à custa de uma periferia com estruturas produtivas mais semelhantes à dos países a que, em simultâneo, se abriram as portas do comércio mundial (China, Índia,...), permitindo-lhes – favorecendo-o mesmo – competir em condições de dumping social.

Eu, se fosse alemão’, teria pudor em exigir o que quer que fosse, à Europa e ao Mundo, sabendo que o meu nome estará sempre associado aos episódios mais negros do séc. XX (guerras, genocídio...), incluindo, já na última década, o precipitar da desagregação da Federação da Jugoslávia, com o reconhecimento unilateral, à revelia da Comunidade Europeia, do primeiro país a declarar a secessão, a Eslovénia, a partir do qual depois se desenrolou o drama de mais uma cruenta guerra no centro da Europa!

Mas isso sou eu a falar, eu que não sou alemão!

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

A queda do Euro – deste Euro – e o fracasso de um certo projecto europeu!

Com a Itália às portas do 'apoio financeiro externo', parece exaurido e cada vez mais próximo do fim ‘este projecto europeu’ – designação que acoberta múltiplos conceitos e trajectos: das pias intenções dos ‘pais fundadores’, acabados de sair da mais devastadora guerra da História, de defesa contra uma belicista e imperial Alemanha (criação da CECA e Euratom, depois a CEE...); ao monstruoso edifício em que se transformou, por via, antes de mais, das inevitáveis dinâmicas capitalistas (na fase da globalização financeira), moldadas ao policromo caleidoscópio de povos europeus – acabando ‘às mãos’ de uma reunificada Alemanha, de novo imperial e ameaçadora!

Com ele morre a ilusão de uma certa Europa Unida, projecto federalista à semelhança do existente do outro lado do Atlântico, para com este concorrer no âmbito de um sistema que se alimenta do esmagamento dos mais fracos pelos mais fortes. Onde, pois, os mais fortes europeus (Alemanha, França, Itália,...) ganhariam força com a agregação dos europeus mais fracos (as várias periferias) para melhor concorrerem com a superpotência EUA na globalização capitalista.

Daí que a geometria da construção do Euro tenha sido traçada à medida das principais potências económicas europeias: favorecer os interesses do Centro, qualificado e mais produtivo, à custa das Periferias, menos produtivas mas não menos consumidoras, eleitas, no entanto, como seu principal suporte comercial. Na ausência de mecanismos de compensação ou de convergência, as dinâmicas capitalistas, entregues à espontaneidade dos mercados – assim o determina a ideologia neoliberal dominante – encarregaram-se de concluir este processo de decantação, colocando a Alemanha no topo da pirâmide competitiva, agora também já sob aviso prévio quanto ao seu próprio destino final.

Ora, perante a demonstração prática da inutilidade das políticas da austeridade para superar esta crise e da falácia em torno da teoria do ‘viver acima das nossas posses’, resta saber se o brutal processo de acelerada transferência de recursos do trabalho para o capital financeiro a pretexto das dívidas traduz apenas a incompetência de líderes sem estofo. A obsidiante presença alemã em todo esse processo (com ou sem o caricato – mas útil – apêndice francês), à revelia das instituições europeias ostensivamente subalternizadas, autoriza pelo menos a dúvida sobre se tudo isto não obedece a um plano meticuloso de afirmação imperial germânica, agora pela via económica – como crescentemente se vem sustentando, por enquanto apenas no âmbito de imaginativas (ou é mais do que isso?) teorias da conspiração. Certo é que com epicentro na NET (o lugar onde se vem afirmando, diga-se, o exercício de uma liberdade cada vez mais contida nos lugares institucionais dedicados para o efeito), tem vindo a engrossar um ainda difuso sentimento anti-germânico.
 
Não se afigura excessivo afirmar-se, entretanto, pairar de novo sobre a Europa o espectro de uma Alemanha expansionista, agora não através dos tradicionais e directos meios marciais do passado, antes pela mais civilizada e indirecta via económica do presente (sob pretexto de incumprimento dos Estados), assim se ludibriando, por amarga ironia do destino, as cautelas demonstradas pelos ‘pais fundadores’ que, ao tentarem controlar a potência bélica, abriram a porta à potência económica.

A desagregação da ilusão de uma Europa Unida, parece acarretar igualmente o termo de uma certa ilusão ‘internacionalista’, potenciada pela globalização, das lutas dos trabalhadores, agora cada vez mais confinados aos seus redutos nacionais, empresariais, locais, que assim ganham expressão e sentido crescentes. Nesta fase de recuperação do espaço económico perdido e com a estratégia federalista posta em causa, são de considerar todas as alternativas que contribuam para a retoma da soberania perdida dos países menos defendidos economicamente, incluindo a saída do Euro, se tal for considerado necessário para travar a especulação financeira sob que se acoita o actual processo de transferência de valor, seja ela ditada por estratégias imperiais (alemãs ou quaisquer outras) ou pela espontaneidade dos ‘livres’ mercados.

Seria interessante calcular qual o montante da dívida acumulada após a eclosão da ‘crise das dívidas’ - ou seja, nos dois últimos anos - em resultado da gestão liderada pela Alemanha, a mesma que agora afirma, pela boca de Merkel, ser contra uma ‘união das dívidas’ (!). Ganha, por isso, cada vez mais sentido e urgência a exigência da esquerda parlamentar (Bloco e PCP) para uma auditoria à dívida pública. Constituiria um exercício salutar e demolidor de todas as demagogias apurar o que nela é o resultado de efectivos compromissos assumidos (e aqui qual a sua natureza e intervenientes) e o que sobreveio por força da espiral especulativa que a ‘gestão Merkozy’ fez explodir de forma incontrolada. Restam ainda por apurar todos os contornos deste fabuloso ‘negócio’!

Depois das inúmeras falsas partidas a que a dupla Merkel-Sarkozy já habituou os europeus, seria verdadeiramente surpreendente que a semana que se iniciou e que, pela enésima vez, se anuncia decisiva para a Europa (e se fala da sua ‘refundação’...), trouxesse algo de novo à gestão da crise, em especial na contenção da especulação. Uma coisa parece assegurada: a crise vai continuar a gerar austeridade para uns e chorudos proveitos para outros. Uns e outros, os mesmos de sempre.